Goya, não vamos à Florianópolis


Marcus Vinicius Batista

Eu o avistei enquanto esperava na fila do sorvete. O caminhar era lento, balançando para os dois lados, como o faz há 26 anos, quando o conheci no demolido prédio da Comunicação, na Pompéia, em Santos. O andar é compatível com a serenidade que, às vezes, abafa a pressão das redações jornalísticas onde convivemos por mais de 10 anos. Nunca o vi gritar com alguém, mesmo quando as notícias ferviam.

Ricardo Goya estava acompanhado de três primos. Como ele não me viu, matei os filtros sociais e gritei:

— Goya, vai subir! A Ponte vai subir!

Meus filhos me olharam assustados. Minha esposa me cutucou para chamar minha atenção pelo escândalo no meio do shopping center. Goya reagiu com o riso curto de sempre (“hehe”) e veio em minha direção. Não nos encontrávamos há um ano. Desde que sai das redações e passei a militar no Jornalismo de outras formas, nossos encontros ficaram mais esporádicos.

Após o abraço, engatamos uma conversa sobre futebol. A Ponte Preta, time de coração dele, pode voltar à série A do Campeonato Brasileiro. A reação é espantosa: oito vitórias e um empate nos últimos nove jogos. Uma vitória sobre o Avaí, concorrente direto, em Florianópolis, e o retorno acontecerá.

Goya é o único torcedor da Macaca que conheço. O único descendente de japoneses torcedor da Ponte que conheço. O único levantador de vôlei do Atlanta, clube da colônia de Okinawa, que conheço. O melhor editor de esportes com quem trabalhei. Um dos jornalistas mais corretos com quem pude conviver e aprender.

Goya foi meu parceiro de reportagem na primeira e na segunda matérias que escrevi na vida: 1) pescadores que se tornaram coveiros em Santos, por conta da crise econômica no Governo Collor. 2) um perfil dos candidatos a vice-prefeito de Santos, em 1992. Goya é único!

Na sequência, perguntei sobre o trabalho. Veio a má notícia, que me deixou sem o que dizer a ele.

— Estou de licença. Coloquei um marca-passo no coração. Cheguei a ficar na UTI. Arritmia. Agora, estou bem!

Dialogamos rapidamente sobre a rotina de afastamento do trabalho. Nós nos despedimos, ele retomou o passeio com os primos e eu permaneci na fila do sorvete em promoção.

Passei a semana inteira remoendo esse encontro e adiando a elaboração desta crônica. O texto saltou para todos os lados na minha cabeça, mas me faltou coragem de colocá-lo em pé.

Vê-lo me fez lembrar o quanto depositamos nas costas do trabalho o distanciamento de amigos que foram muito próximos e importantes ao longo de certas fases da vida. Tenho tentado essa mudança desde 2016 e, por conta disso, cafés e visitas em casa se tornarem praticamente semanais. Goya, peço desculpas, “escapou” dessa.

Vê-lo me injeta uma dose cavalar de saudades, não dos tempos que se esvaíram com a idade e os caminhos traçados, mas das conversas que poderiam ter nascido se não nos preocupássemos tanto com compromissos urgentes no curto prazo e irrelevantes quando os observamos com distância segura. Memórias, perspectivas, compartilhamento de experiências. Hoje, este pacote é essencial para minha sanidade.

O encontro casual no shopping e a Ponte Preta ressuscitaram um dos episódios mais malucos que vivi por causa do futebol. Há mais de 20 anos, a Ponte estava na mesma situação, na boca da caixa para voltar à elite do Brasileirão. Prometi ao Goya que o levaria em Campinas para o último jogo, contra o Naútico, de Pernambuco.

Cumpri a promessa. A viagem me permitiu testemunhar o acesso da Ponte e me rendeu, além de uma multa por excesso de velocidade, uma crônica. Este texto foi o único prêmio literário que ganhei. (aqui, o link da crônica)

Neste sábado, dia 24, a Ponte Preta pode retornar à primeira divisão do futebol nacional. No shopping, Goya oscilou entre o desânimo e a esperança escondida nos bolsos.

— Pôxa, a Ponte é especialista em falhar no último jogo.

Tentei animá-lo. Comentei com outro amigo, o Léo, de Maceió, que seria sensacional se Ponte e CSA subissem. Nenhum jogo se compara a qualquer amizade, mas ... vencer ajuda como pílula de felicidade.

Gostaria que o Goya não assistisse à partida, mais por razões emocionais e cardíacas, claro, do que por não poder levá-lo ao jogo decisivo.

Adoraria viajar à Floripa, pois acredito que damos sorte à Macaca nos momentos essenciais de sua história. A Ponte Preta condiz com minha predileção por times sofridos, para quem nada vem de bandeja ou 1 a 0 se comemora como goleada.

A Ponte, subindo ou não, sempre me conduz às lembranças de convivência com seu torcedor único, o Goya.

Comentários

Andre Argolo disse…
Será que esse nosso tempo, de tantas possibilidades, é uma coleção mais de vivências perdidas? Ou será que a consciência dessa coleção de vivências perdidas é que nos faz notar as possibilidades imensas do que é próximo? Essa saudade que você descreveu, acho que ela mora em mim também, Marcus. Mora como uma interrogação, como uma exclamação, um sinal gráfico que o teclado não contém. Lembro de quando nos reencontramos, depois de um longo tempo sem conversarmos, que me contou da partida de sua mãe e eu me senti imprestável. Como me sinto ao saber do que o Goya viveu, admirado Goya. Como é bom reencontrar o Goya, você, o Padin, o Alexandre Gois, a Deborah Okida, a Eliane, a Thaís Lyra, com quem fui jornalista (ela continua) desde nossos 11 anos e, trabalhando bem ao lado dela, não vi que passava por momento difícil (não há distração pior). Não passei por nada tão difícil, mas precisei de vocês várias vezes, sem nem saber. Nos meus delírios, nas vezes em que, desesperado, frequentei filas em lotéricas, planejei a 'redação' perfeita, uma publicação sobre tudo e qualquer coisa só para poder juntar no mesmo espaço físico essas pessoas maravilhosas que me habitam ainda, e também as que não citei porque não caberiam nem os nomes nem a injustiça das ausências. Um caminhão de dinheiro para "resolver" o problema... que provavelmente não precisa de nenhum centavo para ser resolvido. E o que é realmente necessário ao mesmo tempo não cabe no bolso e pode-se ter a todo instante, mas ainda não alcanço. Marcus, pode resolver isso, por favor?