A japonesa e a Ponte Preta

Este texto foi premiado no concurso literário MULHER JAPONESA IMIGRANTE - 100 ANOS, promovido pela Academia Feminina de Ciências, Letras e Artes de Santos, em 2008.

A primeira vez que a vi foi na universidade, quando começávamos o curso de Jornalismo no início dos anos 90. Imediatamente, ao vê-la vestida com um exótico uniforme de time de futebol, pensei em três perguntas, nenhuma delas genial, somente óbvias e fruto de curiosidade dos mais próximos. Na verdade, nunca as fiz, mas o tempo me deu a resposta para uma delas.

Como poderia uma pessoa –nascida em Santos - torcer para a Ponte Preta, sem jamais ter conhecido a cidade de Campinas? Como poderia uma mulher, sem se relacionar com ninguém que torcia para o mesmo time, se apaixonar pela Macaca campineira? Como poderia uma mulher, descendente de japoneses, se interessar por um time sem quaisquer vínculos com a colônia ou com a região onde reside?

A única resposta que obtive foi que a paixão pela Ponte Preta nascera naquele momento em que toda criança – por volta dos seis aos oito anos – começa a entender um pouco a dinâmica do futebol. Isso acontecera na passagem dos anos 70 para a década seguinte. E como normalmente a criança escolhe o time que ganha bastante ou sempre chega às finais, ela passou a gostar da equipe do interior do Estado.

A amizade cristalizou ao longo da universidade e depois viemos a trabalhar juntos. Numa segunda-feira, o clima na mesa de trabalho dela era de velório. Pensei: - Um parente morreu!

Ao me aproximar e olhar para ela, percebi de imediato a dor e conectei com uma das páginas do Caderno de Esportes, aberta sobre a mesa. A Ponte Preta havia sido rebaixada para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Foram dias de luto e de silêncio.

A ansiedade diante de um quadro que não se alterava me fez tomar uma decisão. Encostei à mesa de trabalho dela e fiz a promessa: - Não importa aonde, mas nós estaremos no estádio no dia em que a Ponte Preta retornar à Primeira Divisão! A reação foi discreta, um sorriso de canto de boca, típico da cultura trazida de navio por seus avós, oriundos de Okinawa, na primeira metade do século.

Dois anos depois, a Ponte Preta chegou às finais do campeonato. O jogo decisivo seria em Campinas. O adversário, o Náutico, de Recife (PE). Saímos logo cedo, comigo ao volante do automóvel Gol. Como nunca tínhamos ido à Campinas, calculamos mal o tempo de viagem, obrigando-me a acelerar além da conta na rodovia Anhanguera. Os momentos de piloto ocasionaram a chegada de uma correspondência indesejável dois meses depois da partida: uma multa por excesso de velocidade. Preço mínimo pelo que testemunharíamos.

Que sofrimento! Partida equilibrada, muitas discussões, embora fosse jogo de uma torcida só. Ficamos em pé, pois se tornara impossível ver alguma coisa se sentássemos na arquibancada, além do risco de queimaduras diante de uma temperatura de 35 graus que cozinhava o cimento.

O goleiro da Ponte Preta, de nome Fabiano, fez vários milagres e um gol a cinco minutos do final – esqueci-me do autor - selou o resultado em 2 a 2. O empate era suficiente para o retorno à elite do futebol nacional e para provocar histeria generalizada no estádio.

Não a reconheci mais. Pulava como criança, abraçava torcedores e torcedoras que jamais havia visto, queria invadir o campo para apanhar um pedaço de grama como lembrança. Quase nos perdemos. Na volta pela rodovia Anhanguera, ela dormiu sorrindo, extasiada pelo que considerava a maior demonstração de amor que poderia dar pelo time. Para mim, a concretização de uma promessa que selaria definitivamente a amizade.

Faz três anos que não nos encontramos. Quase duas décadas de convivência me ensinaram que a leitura das aparências pouco importa – ou melhor, fortalece preconceitos – diante de uma teia ininterrupta de relações sociais em uma cultura miscigenada e em constante mutação. Outro ensinamento, talvez o mais pragmático de todos, consiste em concluir que não há torcedora mais apaixonada por futebol. Corrigindo: é a torcedora brasileira mais apaixonada de quem poderia sonhar em ser amigo.

Comentários

airssea disse…
Belíssimo texto e engraçado! Fico imaginando a japonesa com uniforme da ponte preta... Isso é que é paixão! Rsrs