Ronaldo? Não, o homem da cara feia

Ronaldo se despede hoje da seleção brasileira. Milhões vão testemunhar a aposentadoria. Milhares vão escrever sobre ele e agradecê-lo pelos serviços prestados. Centenas vão acompanhar, bem de perto, no vestiário, nos corredores e à beira do gramado os minutos que antecedem a entrada em campo, além dos momentos pós-despedida.
Como já dei adeus ao Fenômeno e também disse obrigado pela folha corrida no futebol mundial, aproveitei a festa para escrever sobre um personagem que, na atual conjuntura da seleção brasileira, é o comandante dentro de campo.
Lúcio completou, contra a Holanda, a centésima partida pela seleção. Entrou para a minoria centenária, associada a gerações vencedoras e pilhas de títulos, inclusive em Copas do Mundo. Lúcio levou a dele, em 2002.
O zagueiro da Inter, de Milão, é o líder na acepção do termo dentro do futebol. Não é o medalhão que vive e sobrevive dos holofotes da mídia. Não protagoniza vitórias com gols ou lances de efeito. Ele trabalha a partir de soluções internas para problemas internos. Conversa de pé de ouvido ou bronca na privacidade do vestiário.
Lúcio somente dá entrevistas quando a ocasião se faz realmente necessária. E joga numa posição em que as boas partidas representam obrigação cumprida. Falhas quase sempre resultam em derrotas ou gols adversários.
Lúcio está com 33 anos. Promete integrar o grupo na próxima Copa do Mundo, aos 36. A história do futebol indica que o perfil do jogador não transforma o sonho em delírio. O zagueiro tem uma vida regrada, avessa às badalações. Mantém a vida privada entre quatro paredes. E permanece em alto nível há anos, sempre nos principais campeonatos, sempre em equipes grandes.
O zagueiro é um dos principais expoentes de uma geração de defensores que tornou a mão-de-obra brasileira cobiçada pelos principais times europeus. Quase todas as equipes de ponta contam com atletas brasileiros em suas defesas. Do clássico ao raçudo, do velocista ao técnico, os zagueiros brasileiros encontraram espaço no principal centro de futebol nos últimos 15 anos. Lúcio está na Europa há cerca de uma década. Passou pela Alemanha e se adaptou com facilidade ao futebol da Itália.  
Formado no Internacional, de Porto Alegre, o zagueiro joga como se ainda estivesse nos campos enlameados do interior gaúcho, de frente com aqueles adversários recém promovidos à divisão principal e, portanto, na disputa do jogo da vida. Qualquer partida vale vaga para final, na cabeça dele.

Lúcio não é um Luis Pereira, mas sabe passar a bola, ao contrário da maioria dos colegas de profissão, que engrandecem e perpetuam o título de beques de fazenda. Ele jamais foi um rebatedor. Desarma e fica com a bola. Só manda para o mato se houver aperto e sem ficar vermelho de vergonha.
O sujeito é um doador, adepto da solidariedade. Ao longo da carreira, preferiu jogar no combate direto aos atacantes e deixou os colegas mais clássicos para a sobra. O casamento com Juan, herdeiro de Aldair no Flamengo e na seleção, durou anos desta forma.
Quando assisto a um jogo da seleção, espero pelo óbvio: ver o zagueiro arrancar com a bola por 40, 50 metros, como se mostrasse aos volantes que entopem o meio-campo a natureza do trabalho. E entrega a bola nos pés do meia-atacante, sem aqueles chutões modelo ligação direta, com chances de sucesso idênticas a um bilhete de loteria. 
Hoje, na despedida do Ronaldo, o zagueiro Lúcio cumprirá novamente seu papel. Fará cara feia para os romenos, jogará como se não fizesse parte de uma festa. Sem sorrisos, sem abraços, é o nosso Lugano, melhor tecnicamente. Tentará servir ao companheiro de zaga, David Luiz, do Chelsea, para mantê-lo tranqüilo, sem afobações. É amistoso, mas perder para a Romênia indicará crise à porta.

A apoteose de Lúcio será a arrancada até o meio-campo, quando empurrará o time ao ataque nos momentos de monotonia. Ele vai desarmar os romenos vários vezes, sejam cortes de cabeça, sejam carrinhos na bola, sem falta. Se necessário, vai reclamar com o juiz e correr os 90 minutos como se tivesse 20 anos.
Lúcio deve seguir como titular na Copa América, em julho, na Argentina. Restará aos “novatos” Thiago Silva, do Milan, e David Luiz, além de Alex Silva, Luisão e outros zagueiros de excelente nível disputarem a vaga no lado esquerdo da defesa. Como está provado desde a conquista de 2002, o Brasil não tem problemas em se defender. Em parte, graças ao homem da cara feia.

Comentários

Lúcio é essencial para a defesa da seleção brasileira. Ótimo texto.