Os dois velhos e o menino (Crônicas de uma epidemia # 51)


Marcus Vinicius Batista

O velho acordou chuvoso. Não importa o dia da semana. Sempre se levanta nebuloso, cinzento com o clima melancólico. Ele se arrasta para o banheiro, sem o peso da idade, com o peso das dores e das culpas de outras frentes frias. O velho acena para o menino, sua própria previsão de tempo bom, mas com cara de céu encoberto porque madrugou sem dormir o necessário.

Quando entra no banheiro, o velho tranca a porta para esconder suas nuvens carregadas, quase como a hiena do desenho animado que choraminga os azares da vida. Ele só não a encarnou porque sabe que – se houve azar – a falta de sorte foi responsabilidade dele mesmo.

O velho se despe para se alagar no chuveiro. Ele desagua pelos olhos, anônimo e invisível, e esbraveja raios tão caóticos como a ausência de coerência que o eletrificou. Não há trovoadas, mente para si mesmo. Os trovões esperneiam e fazem birra dentro dele, que jura se manter silencioso como a bonança, em parte falsa, em parte genuína.

Ele tem certeza de que, na sua pororoca particular, a tempestade é feito chuva de verão e que, portanto, vai passar. Seu dilúvio desaparece pelas rachaduras da represa emocional, quando ele respira fundo, conta até dez e pensa que o menino continua lá fora, ansioso por viver.

O velho olha para os pés áridos, calejados pelas suas falhas, cicatrizados pelos amores recebidos, mais confortáveis pela esperança e pela fé que curam pouco a pouco as velhas (novas) chagas.

O velho firma o passo, equilibra a coluna, contorna a areia movediça de minutos atrás e entra na cozinha. Ali, outro velho o espera. Bem mais velho em sabedoria e experiência, de pele ancestral e morada na mata, o conjunto que só se descobre possuir com a carga do tempo. E com incertezas. Um outro tempo, aliás, que faz o velho que chega parecer um garoto de fraldas molhadas, medroso, acuado e vulnerável.

O velho mais velho espera sentado. Cansar as pernas é para quem as tem fortes. Ele somente se sustenta na paciência delas. Apoia-se no cajado para não desperdiçar energia com as batalhas alheias. Aprendeu que guerras acontecem por miudezas, se perpetuam por mesquinharias, se alimentam de insatisfações, que só se dissipam, no fundo, pela descoberta do que é essencial.

O velho mais velho não tira seu chapéu de palha com a presença do amigo. Ambos se acostumaram. Trocam olhares, falam entre si sem mexer os lábios. O menino, lembra-se dele?, nunca nota o encontro diário. Outro dia, até perguntou o que o velho do chapéu fazia ali, na cozinha, mas se contentou com qualquer resposta. Ele é só um menino, ainda vai entender a vivacidade dos detalhes, ponderou o velho mais velho.

O velho olha para sua versão mais idosa, olha para o menino e sabe o que fazer. Nada a dizer. Pouco a dividir. Tudo a compartilhar. A sutileza da diferença entre os três verbos (e entre eles três) o faz sorrir. Finalmente, está aprendendo. O dia sempre clareia.

O velho esquenta a água, prepara o café. Na repetição mínima das manhãs, o velho rejuvenesce pelo amor. Ele serve primeiro o mais velho de todos. Xícara pequena, amor desproporcional, dito não pelas palavras que se perderiam, mas por estar por perto hoje, amanhã e no café seguinte. O menino, ah, o menino, esse toma o café desavergonhado, tal água, com a pressa de quem exala sede por viver.

Agora, o velho os observa ensolarado. O eclipse já se foi. A luz vai dominar aquela cozinha pelo resto da manhã. É a melhor luz do dia.

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