O peregrino (Entre insônias e cabelos brancos # 2)




****

Entre insônias e cabelos brancos é uma série de textos em parceria com o escritor Alessandro Padin. A proposta é simples: escrever um texto a partir do que o outro escreveu. Um diálogo literário. Se você quiser ler a crônica do Alessandro, o link está no final deste texto.

****


Marcus Vinicius Batista

Ele nunca viu o deserto como um obstáculo. Pelo contrário, ergueram amizade na secura mútua. Às vezes, ele se confundia na tempestade de areia. Às vezes, se arrastava sob sol forte. Era uma vida contínua no horizonte amarelado. No deserto, o peregrino sabe que nunca se chega, sempre se estende.

A melancolia o empurrava há anos. A aridez temperava o costume de perambular. Quem perambula, acreditava, é quem esqueceu o rumo faz tempo. Não se incomodava com as incertezas da areia que lhe queimava os pés e apagava a forma anterior nas marcas da pegada seguinte.

O que ele temia era a areia movediça, jamais presente no deserto, mas pulsante no sofrimento que o paralisou lá atrás, quando percorria planícies, mas ignorava o verde, hoje tão desejado nas mirações nebulosas do vapor que sobe o dia todo.

O peregrino aprendeu que bastava caminhar. Se paralisasse, os sonhos murchariam. Ele ficaria desidratado tal qual o desejo de quem vê o deserto como fim, e não como meio. Ele estava lá desde qualquer hora. Era, de certa forma, o deserto, porém convicto de que sairia dele. Se não, sonhava com oásis que o protegeria de si mesmo.

O peregrino se sentia diferente de uns dias para cá. Um de seu ombros ficou pesado, mas sem rigidez. Sentiu um toque e o aroma da maresia. A sensação salobra o fez enxergar um velho marinheiro. Rosto distorcido, testa enrugada, olhar de sabedoria. A fumaça do cachimbo o desnorteou, mesmo sem ver onde o tabaco se incinerava. O silêncio do marinheiro se misturava com o sopro do vento. Quem soprava? No deserto, haveria de ser a miragem da sede.

Anteontem, o peregrino sentiu o outro ombro anestesiar. O cheiro era feminino. O toque, mais leve do que fada invisível dos contos que lia quando criança. O toque que balançava feito brisa, sem sacudir por fora, mas chacoalhando por dentro. Tudo remexido. Revirado. Não tinha a sensação de bagunça. Parecia tudo no lugar, como se observasse do planalto seu próprio vale – aquele onde afundara.

O peregrino aprendeu, com a idade, que explicações naquele monte de areia eram para os tolos. Andar não garantia lugar algum; pior ainda se especulasse caminhos. Para sair do deserto ou pelo menos conviver melhor com ele, vital seria sentir. Absorver, abstrair, encorpar o que seria destinado a ele. Ganhou a expiação da dores de presente. No deserto, o mínimo que se recebe exige agradecimento, tudo se guarda, tudo se armazena para a noite, que se instala em baixa temperatura, sob o risco de o velho caminhante enrijecer suas juntas de novo.

Perdido no labirinto de suas dores, ele não levantou a cabeça o suficiente para enxergar o traçado que se desenhava. Quase tropeçou quando as primeiras pedras emergiram. A areia perdia músculos. A grama a nocauteara e indicava que aquela ilha da fantasia o pertencia. O oásis de seus sonhos. Nada de pensamento mágico. Era a persistência de imaginar suas próprias alegorias, de crer que poderia sobreviver se sonhasse.

O som do solo o avisou. Os pés não afundavam. Os pés ficaram firmes. O peregrino firmou o cajado, ergueu a cabeça e lacrimejou: a água estava ali, diante dele, cristalina para beber, para idolatrar, para orar em diversos obrigados. A água que jorrava daquelas mãos femininas. A água que embalara o marinheiro de viagens ilimitadas. Existiam ou não? Pergunta inútil para quem poderia descansar após tanto patinar na areia.

O peregrino se ajoelhou, juntou as mãos e fez o movimento de apanhar um pouco d’água. Desistiu. Desistiu porque viu o próprio reflexo. Em seu rosto, o desenho do arco-íris, a diversidade de tons que o manteriam colorido por mais incontáveis passos no deserto. A areia não terminara. O sofrimento, sim.

Naquele oásis, o peregrino entendeu que, se quisesse continuar vivo e errante, não deveria se preocupar com o final de uma trilha. O que mantinha o cajado em suas mãos era sua natureza, a do sonho, que tantos insistiram em abdicar.

Obs.: O texto do Alessandro neste link.



Comentários