O camarada vai partir (Crônicas de uma epidemia #50)



Marcus Vinicius Batista

Ele andava sem pressa, de modo que a caminhada pudesse permitir a extensão da nossa conversa. Costumava ouvir e raras vezes se manifestar, muito menos interromper ou julgar as ideias de quem lhe trazia problemas, episódios, verdades, mentiras ou histórias de versão única. O ritmo dos passos era a confissão de que ouvinte hoje era tagarela.

Naquela tarde, ele falava pelos cotovelos, joelhos, tornozelos e pés. Cada passada, um fato. Cada quadra, uma página. Cada bairro, um capítulo da mudança que se aproximava. Talvez a última, provavelmente a mais desejada.

O camarada tinha decidido partir. Não se despedia de mim – ainda nos encontraríamos. Não trazia planos em formato de especulações, e sim o relato do que já estava pronto no novo caminho. Tinha prazos a cumprir, vida material para se desgarrar, um novo endereço para procurar, primeiro o provisório, depois o definitivo, e saudades para construir aqui e exterminar por lá.

O camarada sempre foi paterno, não paternalista. Tem um senso de justiça de embasbacar os juristas mais puros, acolheu mais gente do que porta de igreja, impulsionou tantos peregrinos, enquadrou uns e outros que teimaram em ser prejudiciais. Sacrificou seus sonhos pessoais e as aspirações de trabalho para que a vida dos próximos pudesse se encaixar na sensatez da sobrevivência.

Desta vez, ele se deu o direito de pensar no próprio futuro. Um horizonte próximo, de poucos dias e milhares de quilômetros de distância. O futuro seria o retorno ao passado do recém-nascido. O horizonte também teria o cheiro da maresia, mas com sotaque diferente. A terra não seria mais a que adotara para constituir família e percorrer o mundo da indústria. A terra nova-antiga era de relógio mais lento, de um ponteiro só, do contato com a irmã de muitos anos de ausência e de pouco tempo projetado de coexistência.

O camarada me deu a honra de compartilhar sua fé. A fé nas pessoas. A crença de que a justiça alcança os que propagam o bem. Ele era a personificação da receita de um bom amigo. Estar ao lado sem determinar narrativas. Ouvir sem interferir nas incoerências dos ruídos alheios. Apoiar e chorar quando se grita que homem não chora. Que pai não lacrimeja. Que avô não se corrói em lágrimas de falta, de perda, de luto.

Escrevo assim que outro amigo partiu rumo ao norte, com a decisão e a necessidade de retornar em breve, sem dia certo, sem local para pousar. Deixará uma vida para erguer outra na minha vizinhança, fruto de horas de dedicação e sacrifício. Estarei aqui outra vez de prontidão para apoiá-lo e, se possível, abrir a picada de faca em punho ao lado dele.

O camarada não. Ao mesmo tempo, escrevo com as vésperas da partida dele em meu colo. Ele partirá em menos de 15 dias também rumo ao norte, com a convicção de que lá encontrará sua última parada. Se é pela idade, se é pelo nirvana de retorno do filho pródigo, se é pela sapiência, nem o camarada faz ideia. Quem seria eu para colocar em dúvida a riqueza das origens, o deleite da terra prometida e cumprida?

Prometo aproveitar os últimos dias com o camarada. Ouvir seus percalços mais antigos, aprender com suas aulas renovadas, abraçar com o amor de um filho, tomar um café improvisado de minutos atrás. Prometo enganar a saudade de quem vive com a sensação de que não haverá outro encontro, de que o ponto final ganha corpo no rodapé da página.

Obrigado, camarada. Mais: um amigo. Meu amigo, agradeço por ter sido um pai. Que minha sensação seja um desvio nesta trilha...

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 23 de maio de 2021.

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