O argentino e a ambulância (Crônicas de uma epidemia # 55)



Marcus Vinicius Batista

A ambulância berrava da outra quadra. Meu filho Vini estava nela. Sentia um certo temor. Se a polícia parasse o veículo? Eu esperava que a ambulância encostasse na porta do prédio, na falsa urgência daquele resgate. Jorge, o motorista, preferiu estacioná-la do outro lado da rua; sem pressa, apagou os faróis e abriu a porta.

Vini desceu pulando, com sorriso saudável de orelha a orelha. Atrás dele, Pedro – o melhor amigo e filho do Jorge -, corria em minha direção. Os dois tinham adoecido de felicidade depois de passar a tarde inteira brincando em casa. A ambulância era a novidade, uma volta no quarteirão de sirene ligada, surpresa que não percebi de primeira. Procurei o carro convencional que buscaria o Pedro naquele final de tarde de sábado.

Essa semana, eu visitei o Jorge para uma sessão de acupuntura e revi a ambulância. O veículo passou dois meses em tratamento especializado. Parte elétrica e mecânica refeitas de maneira cirúrgica. Pneus zero beijando o asfalto. Quando Jorge abriu a porta traseira, nasceu o consultório, o sonho dele em quatro rodas. Maca, cadeiras com cheiro de bebê, espaço para instrumentos, uma TV a distrair quem esperará por atendimento.

Jorge Pastor é um curandeiro dos melhores, que seria queimado com honras na fogueira da Inquisição, apesar de ter sobrenome de líder religioso. Curandeiro como profissão de fé, de quem nunca promete a cura, e sim prega o alívio do sofrimento.

Ele carrega a benção de quem estuda, estuda, estuda o conhecimento da ancestralidade milenar. Jorge enxerga o ser humano de maneira integral. Um ser biopsicossocial e espiritual, como reza a medicina desconectada da indústria de pílulas com pretensão de milagrosas. A ambulância é sua arca, com a diferença de ser para todos.

Jorge é especialista em medicina chinesa. Ele nasceu na Argentina e chegou ao Brasil no final dos anos 80. Hoje, é casado com Monica Yamazato, sobrenome tradicional japonês. O filho deles, eu chamo de Pedro Pedreira, pois esse menino de 9 anos é uma rocha que a vida insistiu, insistiu, mas não quebrou com o racismo tão arraigado por aqui.

Se a família representa a diversidade, a ambulância transporta, na sua própria lataria, essa característica de um país formado por gente de tantos cantos. O veículo veio como doação anônima, de outro gringo que joga futebol num país europeu. Carinho de vizinho, solidariedade de imigrante.

Jorge e Monica não mudaram de vida. Ajudar, acolher, generosidade e gentileza poderiam compor seus nomes sociais. Monica leva adiante o projeto Joaninhas, de apoio a famílias vulneráveis em termos socioeconômicos. De livros infantis a ovos para fortalecer a alimentação. Jorge, por sua vez, atendeu em diversos bairros periféricos de Cubatão.

O consultório ambulante está em vias de transitar pelas ruas de Santos. A ambulância receberá adesivos nos próximos dias. A equipe de atendimento está em fase de formação. Uma possibilidade é iniciar o atendimento por albergues.

A ambulância sabe qual é a missão dela. No primeiro dia, com aqueles dois meninos que vibravam com a sirene, ela me deu a convicção de que o caminho é prevenção e o cuidado. Ao contrário do que se defende em muitos gargalos do sistema, ambulâncias não simbolizam doenças. Elas podem atender emergências de amor, remediar melancolias, suturar dores da alma, pelas mãos de um argentino-chinês e sua esposa brasileira-japonesa, ou pela crença de qualquer pessoa que se aproxime e ouça o sorriso que brota da sirene.

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