O amanhã é o hoje de sempre (Crônicas de uma epidemia # 54)


Marcus Vinicius Batista

O velho se sentia viciado. Não era dependente; no máximo, estava viciado. Ele acreditava que sairia da roda gigante quando desejasse, mas desconfiava de que a volta no brinquedo estivesse no automático. Como todos os viciados, jurava que dependia somente dele, que bastaria um aceno e o vício tomaria seu rumo, de rabo entre as pernas e vergonha na cara.

Nos momentos de tristeza, o velho derrubava a própria arrogância. A autoanálise era circunstancial, efêmera até, mas nessa hora ele entendia que o vício também o confortava. O vício o colocava na posição de vítima, a melhor de todas, a posição que o presenteava com o comodismo, com a paralisia, com a autopiedade, com a misericórdia alheia, com a transferência de responsabilidade. Viciado seria; réu, nunca.

O vício vinha todos os dias. Lidava com ele como se fosse uma refeição. Rápida ou não, com ou sem qualidade, pronta ou à la carte, ele se alimentava e se sentia obeso, jamais saciado. Antes, porém, havia uma entrada: a queixa. Reclamava das mesmas dificuldades, alguma sanadas, outras insistentes. Resmungar era mantra. Nada que provocasse irritação nele próprio ou em alguém. Uma dorzinha ali, um incômodo lá, só para demarcar o território da maledicência.

O velho conhecia o caminho do antídoto. Antídoto porque se sentia envenenado, tomando uma dosagem excessiva de frustração. Combatia a corrosão interna com paliativos ao longo do dia. Do sono aos filmes. Da leitura ao trabalho. Da conversa com amigos ao olhar de pessoas mais íntimas. Tudo aspirina.

O problema é que os paliativos, em tempos emocionais mais frios, se aproximavam do instantâneo. O vício o dominava mais vezes, dependendo do horário. Logo cedo e final de dia eram os picos da abstinência. Não vinha tremedeira, vinha uma certa amargura da idealização sem ato, da fantasia sem mudança de figurino. Vinha uma melancolia que servia de tranca para cada amarra que ele construiu ao longo de quase 30 anos.

O velho sempre foi viciado. Apenas mudou de entorpecente. Por mais de 20 anos, drogou-se em produtividade, trabalho, cobranças de subir mais rápido uma escada que nunca terminava. Sacrificou o corpo de todas as maneiras, injetando metas, objetivos, quaisquer nomes da moda que impregnam de desumanidade os biombos que aprisionam pessoas cada vez mais semelhantes em seus vácuos existenciais.

Quando pensa com alguma positividade, o velho se aconchega no programa de redução de danos. Vive melhor sim, mas ainda se pega na armadilha do desejo. O desejo é tão cruel quanto sedutor. Sobrevive no que não se tem, assassina a conquista assim que ela se materializa. No vício, o desejo é insaciável, voraz, guloso. Como não há conquista, o desejo se canibaliza para voltar à estaca zero.

O velho é viciado em mato. No meio do mato. Na vida no mato. Não há dia, próspero ou minguado, que o velho não percorra – mentalmente - os cômodos de sua cabana nas entrelinhas do nada. Cabana tão sólida quanto seus pensamentos, pois ele nunca flertou com casas de praia, de campo ou condomínio fechado. Sempre amou a vida provisória de um visitante, livre para ir embora quando lhe conviesse ou a chatice o sufocasse.

A cabana, na verdade, teria tamanho de mochila, capaz de carregar sonhos modestos, um modelo de sobrevivência com pouco. No programa de redução de danos, o velho já foi habilidoso em avançar. Cortou, doou, presenteou, reduziu, encolheu, bebeu da experiência do escambo e fez dietas das coisas. Menos, menos, menos. Ele está mais magro, longe de saudável.

O efeito colateral foi o vício num cenário que teima em se redesenhar a cada 24 horas. A mudança de traço não o surpreende, já que se constitui de imagens nunca gravadas, livres para releituras. O velho enxerga o mato todos os dias, sonha com ele, goza com a liberdade ainda que tardia, mesmo que ilusória.

Ele teme que, se chegar perto demais, a mágica se desfaça feito pó no ar. Assim, acredita que não se move rumo ao sonho. Tolo que não percebe a lentidão dos passos; os caminhos, tangenciados; o corpo dele se mexe. Ele quer ver, parece. Tomara. 

Por enquanto, o movimento é o das cobertas, quentes e acolhedoras para todo o sonho que brota do (in)consciente.

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