A enfermeira das almas (Crônicas de uma epidemia # 52)


Marcus Vinicius Batista

O velho entrou no hospital em silêncio. As dores estavam ali, dentro dele, sussurrando pelo centro das atenções. As dores que moravam no fundo daquele corpo que sangrava, daquela carcaça que desejava a cura. Ele não pretendia espernear, embora tivesse uma vontade de gritar no meio do salão de entrada como recém-nascido. Sentou-se mudo. Uma lágrima escorreu de cada lado do rosto, não vistas por ninguém, exceto pela enfermeira que o observava em meio ao caos de um espaço onde a guerra particular se instalaria por toda a madrugada.

Ela se aproximou. Ela era sobrevivente de campos de batalhas. Resistente às perdas, ao choro, cicatrizada em recomeços, estava acostumada a cair, a se resignar, a amputar pessoas que se foram, vítimas de crimes alheios. Luto em cima de luto. Guardava tudo dentro de si. No hospital, não vomitava, não tinha disenteria, não lacrimejava. Se havia algum canto para expurgar o lixo hospitalar interno, ninguém sabia o endereço. Nem ela, desconfiavam os mais próximos.

O velho não resistiu, não se debateu quando ela o tocou. Ela o ignorava enquanto se comunicava com as mãos. O velho demorou a perceber, uma, duas, três vezes, os arrepios que percorriam o corpo todo assim que as palmas das mãos encostavam em suas feridas, assim que o sopro rasgava seus ouvidos. O vento quente dava curto-circuito nas orelhas gélidas daquela madrugada de casacos inúteis, sobrepostos para acobertar suas doenças emocionais.

A enfermeira começou a limpar os ferimentos. Notou pelo toque que havia também uma fratura, consequência do problema central. O paciente escondia bem. Era sobrevivente como ela. Também curou gente até outro dia. Talvez ainda o fizesse, de modo eventual. Talvez tivesse se aposentado por invalidez. Ela não fez perguntas. Abriu o peito dele sem instrumentos, sem anestesia, sem autorização por escrito. Tinha que salvá-lo de si próprio. Uma chance naquela madrugada.

O velho confiava nela, naquele olhar que o atravessava, ciente de que era o algo a ser feito para que não afundasse. Não sentia dor alguma, somente uma tremedeira nas pernas, que ganharam vida própria, e um peso nos pés ressecados, nada sério. Pelo contrário, ela o levava para outro canto, para longe do hospital.

Longe de ser uma alucinação, ele fechou os olhos e a deixou cumprir seu caminho. Não sabia mais onde estava, o hospital tinha outra cor, outro som, outra estrutura. Algo saía dele e provocava deleite, uma satisfação indescritível que até a ideia de deleite soava insuficiente. Desistiu de explicar. Optou por sentir o sopro, o toque, a falta de palavras ditas.

A enfermeira, contaria depois quando o choro dominaria o velho, cutucava seu coração. Ali estava a natureza dos sangramentos, da fratura. Ela aprendeu a seu modo – e isso significa que ainda não entendeu como aprendeu ou de onde tirou suas ações - que a medicina não nasceu há séculos para combater sintomas. Isso é charlatanismo ou ignorância. A cura se aloja na essência da dor, no ponto onde o próprio paciente ainda não alcançou, seja porque tem medo, seja porque se perdeu nas suas entrelinhas sem o guia adequado.

O velho se assustou ao descobrir que ali, naquele lugar, ninguém ficava internado. O pós-operatório seria em qualquer caminho, desde que escolhido pelo paciente. A cura não acontecia por milagre, já deveria ter assimilado. A cura balançava no horizonte, ao sabor das intempéries que o velho teria que digerir. Hoje, amanhã, se eles se reencontrassem. Não haveria cicatriz aparente, consulta de retorno, laudos médicos ou exames para marcar. O velho não recebera aviso algum. Apenas deduziu que poderia andar sozinho, deixar o hospital como todos os que identificou ao amanhecer. Todos como ele.

A enfermeira arrancou com a firmeza dos movimentos delicados e precisos algo de dentro do velho. Ervas daninhas, preferiu chamar. Sujeirinhas e mentirinhas, escolheu denominar no tom de voz singelo. Ela desconfia do que corroía aquele peito. Desconfia, mas não dirá. O velho sabe. Só ele sabe. Só ele sente. Só ele vai carregar ou se livrar do resto, feito as casquinhas que crianças adoram arrancar. Deixe-o pensar assim, vai funcionar.

O velho sonha em rever a enfermeira. Na cabeça dele, é um desejo real, movido a carinho, afeto, sentimentos que ainda não é capaz de classificar. Ele confessa para si que não se esforça para qualificar o que sente. Sente.

A enfermeira, a cada cura realizada, dança. Um bailar solitário, de movimentos de mãos de origem desconhecida, de pés de bailarina que ressuscitam de um presente que nunca deixou de existir. Os passos de dança continuam no saguão do hospital, na entrada da mata, onde raros pacientes a enxergam, onde raros pacientes vão implorar por atendimento, somente aqueles que ela escolher. Por semelhança. Por humanidade. Por amor gratuito.

O velho voltará à mata. O velho precisa agradecer à curandeira. Na verdade, à enfermeira, pois ela apenas deixou fluir o que brota de origem incerta. As andanças do velho deram o recado: atente aonde ela fica, onde tem uma nascente de rio.

As referências do trajeto, o velho terá que escarafunchar dentro do peito e ouvir o sopro, na trilha da alma que ela rasgou, remediou, suturou...curou? Nem a enfermeira tem certeza...

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