O xamã e as fadas (Crônicas de uma epidemia # 41)




Marcus Vinicius Batista

A fada asiática perguntou sem me rodear, pelo Whatsapp (sim, criaturas mágicas do século 21 também se atualizam pela tecnologia):

— A que horas chega o Xamã?

— Em duas horas!

Não houve mais perguntas. Não desconfiei. Elas pensam assim mesmo! Elas falam de forma cifrada, quando desejam me fazer pensar.

O Xamã apareceu na hora marcada. Não era uma consulta formal, não haveria ritual de curandeirismo. O xamã moderno usa seu poder de comunicação com a ancestralidade via boa e velha conversa. Sentou-se na sala, admirou as instalações, falou de literatura, de filmes, de cultura pop. Nada de pose ou arrotos de conhecimento e palavras corporativas.

O Xamã trabalha com a simplicidade de quem sabe o valor de ser invisível, de quem vem e volta para o meio do mato sem perturbar a natureza, sem empapuçar o meio urbano de receitas de bolo ou fórmulas milagrosas de pacote turístico.

Como costuma estar escrito na vida cotidiana, assim que fui ao banheiro, o interfone tocou. Pedi que o Xamã atendesse e veio a dúvida do sábio:

— Onde aperto para abrir a porta?

— Asterisco 1, mestre!

Ele ainda se desculpou:

— Sabe, é que moro em casa, só tem campainha.

Quando abri a porta, era um velhinho com uma cesta na mão esquerda, daqueles sujeitos de rosto simpático, como os magos de desenhos animados. Ele confirmou meu nome e disse:

— Olha, é para você mesmo!

— Quem mandou?

— Não sei. Sei que é pra você.

Diante da resposta típica de desenho animado, desejei ótima Páscoa e fechei a porta. O Xamã, distraído de sua sapiência, também fez expressão de surpresa. Repousei a cesta na mesa e fomos os dois, feito crianças, explorar a encomenda, desvendar o crime do presente-surpresa.

Era uma quadrilha. Cinco fadas. Todas cúmplices na composição da cesta, que permitiria dar início ao ritual com o Xamã. Começamos com a bebida gelada, com leve teor de álcool. Ali, soltamos os espíritos. Depois, saboreamos grãos em estado natural e de uma variação verde, mais temperada. O nirvana se aproximava. Era a consagração em andamento.

Uma hora e meia depois, chega uma das fadas. A fada literária sempre flutua com um livro a tiracolo. Ele veio com o Deus do Trovão, na percepção do meu filho e sua sensibilidade de criança. Para agradar a fada, o menu com letras é simples: café puro, pão e um dos ingredientes que veio dos céus: queijo gorgonzola. Na cesta mística, o queijo veio em formato de patê.

Encaramos mais três horas de ritual. Não senti o tempo galopar. Só notei quando o Xamã, em sua discrição, precisou se retirar para curar outro espécime desta terra. O paciente – foi a palavra que achei – se chamava Pierre, e a sofisticação de seu modo de vida não se limitava ao nome francês. O Xamã garante que Pierre o ensina mais do que aprende.

A pandemia isolou as demais fadas. Agradeci por mensagens no início da noite. A fada japonesa e sua delicadeza de gestos e vocabulário. A fada bonjour, adepta de um amor de vida inteira. E a fada das Liras, que escreve como se toca o instrumento musical homônimo.

Xamã? Fadas? Essa gente existe, pode apostar. São pessoas comuns, que lutam, sofrem, amam, pagam contas. São seres incomuns, capazes de cuidar, acolher, ajudar, sem pedir nada em troca. São criaturas desta dimensão, cientes de que basta perambular por perto, incapazes de ditar regras, determinar caminhos, julgar e condenar à revelia de quem sente dor. São gente. São meus amigos e suas formas mágicas de curar.

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 11 de abril de 2021.

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