O menino de 111 anos (Crônicas de uma epidemia # 46)

 

Aos sete (107) anos

** Texto escrito em novembro de 2020 e publicado no livro Os Jardins de Sucupira **


 Marcus Vinicius Batista

 As duas lições vieram na mesma tarde. A primeira aconteceu no supermercado. Fomos comprar as coisas para o lanche. Avô, tia, tio e um amigo viriam para celebrar o aniversário de 11 anos do Vini.

 Quando passamos pelas geladeiras, pensei no almoço.  Ainda teria que cozinhar, arrumar a casa – Mari, minha filha, tinha adiantado boa parte da labuta -, o fato é que eu estava exausto de uma semana com 12 horas de trabalho diário, em média. Como estávamos só eu e Vini, sugeri que comêssemos uma lasanha.

 — O que você acha, Vini?

Ele olhou umas duas vezes para a geladeira e me disse:

— Pai, vamos levar a de bolonhesa.

— Você prefere?

— Prefiro. E também é a mais barata, assim gastamos menos aqui no mercado.

Fiquei em silêncio. Passamos depois pela seção de produtos próximos do vencimento – de vez em quando têm uns achados por lá – e pegamos a bebida, quase pela metade do preço.

Duas horas depois, veio a segunda lição. Vini encontraria colegas de escola nos jardins da praia de Santos, cidade onde moramos. O encontro seria na Fonte do Sapo, lugar tradicional de encontro de crianças e, aos domingos à noite, de baile com música ao vivo. Uma colega fizera aniversário dois dias antes e a proposta era celebrar três aniversários daquele mês de maneira informal.

Eu maturava a ideia há uns três dias. Pensava no Covid, nos riscos, no fato de eu ser grupo de risco. Pensava na possibilidade de expor meu filho a muitas pessoas sem controle mínimo. Crianças, quando brincam, não vão se policiar ao extremo sobre os cuidados contra o vírus. Conversamos.

— Vini, acho melhor não te levar na Fonte do Sapo. Muitos casos de Covid.

— Pai, não precisamos ir. É melhor a gente ficar em casa, disse numa resposta direta.

Vini é uma criança do seu tempo, da sua cultura. Adora jogos eletrônicos, sonha com o canal no Youtube, consome animações de todos os tipos e lugares, gosta de séries e filmes de super-heróis. E, como toda criança, tem sua cota de surpresa. Lê Julio Verne (terceiro livro do autor nesta pandemia), gosta de canais de ciência no mesmo Youtube, ainda que prefira mais os influenciadores gamers.

Passei dois meses e meio sem vê-lo nesta pandemia. Quando o isolamento começou, ele e a irmã estavam na casa dos avós. Por lá ficaram. Depois deste período, comecei a encontrá-los uma vez por semana na garagem do prédio. Máscaras e limitações físicas. Chegamos a dividir uma pizza da esquina, amparada por guardanapos. Mais dois meses e eles vieram para minha casa.

Vini conseguiu colocar em ordem a vida escolar e se adaptar – nunca mais do que isso – à rotina de aulas online. Que a professora não nos ouça, mas o anúncio do término das lições de casa, no início de dezembro, o deixou feliz. Uma criança como qualquer outra, de qualquer tempo.

O único amigo presente no aniversário é o Pedro, filho da Mônica e do Jorge. O Pedro, garoto de história incrível, também está isolado nesta pandemia com aulas online. Eles passaram a se ver a cada 15 dias, único momento no qual Vini se encontra com outra criança. Na pandemia, as saídas da casa incluem o supermercado, a farmácia e as casas dos avós.

Pedro ficou para dormir.

— Tio, foi a segunda vez que dormi fora de casa na vida. A primeira foi na Tia Suzy.

No dia seguinte ao aniversário, Vini veio me dizer como se sentia. Que tinha gostado muito da festa (na verdade, o lanche mais um bolinho que a Mônica – a mãe do Pedro – trouxe de presente). Não resisti e perguntei:

— Vini, como é fazer 100 anos? (a pergunta é em alusão às reclamações eventuais de qualquer criança. Brincamos que ele parece ter 100 anos).

— Pai, tá errado. Eu fiz 11 anos ontem. Então, são 111 anos.

Nada como ter um filho que não aparenta a idade que tem.


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