O mar, a bicicleta e a casa da “cura” (Crônicas de uma epidemia # 36)




Marcus Vinicius Batista

Meu corpo precisava de reparos. Poderia culpar a pandemia pela negligência, mas seria uma versão distorcida do negacionismo que – no fundo – chegaria no mesmo ponto. A responsabilidade é minha, sem terceirizações, mas com direito a um pedido de socorro.

São 40 dias, com apenas duas folgas no período. Ou eu sacudia a árvore ou deixava os cupins comerem o que sobrou deste tronco de quase 50 anos e mais de uma década de diabetes.

O primeiro passo envolveu uma junta médica. Do urologista ao clínico geral. Visitarei, nos próximos 15 dias, o cardiologista, o endocrinologista e o ortopedista. Foram cinco visitas ao laboratório clínico para exames, mais aqueles aparelhinhos que te acompanham 24 horas. Um mapa detalhado dos estragos na carcaça e as saídas para remendá-la nos próximos meses.

Ao mesmo tempo, fui ao lugar onde chamo de “casa da cura”. O apelido retribui a generosidade com o acolhimento recebido naqueles reencontros da vida. Atravesso duas vezes por semana a entrada da casa branca, sem placas, perdida entre dezenas no bairro do Embaré, em Santos, que me cumprimenta com a horta de temperos, alfaces e couves, contraste com as máquinas de repetição, seus pesos e forças.

A casa branca ressuscitou a amizade com Márcio Valente – sujeito de sobrenome autoexplicativo – após duas décadas. Antes, parceiros de futebol; hoje, cúmplices na visão de mundo e na necessidade de mudança de vida.

Como as visitas à casa acontecem somente duas vezes por semana, minha casca pedia mais para levar adiante o processo de cicatrização. Tinha que retomar velhas paixões, uma relação que me fornecesse combustível para acalmar a vontade diária de desistir. Sim, penso nisso todos os dias.

A bicicleta são minhas pernas sobressalentes, mas a preguiça e outras bobagens transformaram meu casamento com ela num vai-e-vem quase adolescente. Os novos sinais apareceram no final do ano passado, quando passei a resolver alguns problemas profissionais de bike. Minha filha Mari é a companheira de pedal. Paciente para me deixar ditar o ritmo, motivadora para permitir que eu definisse o tamanho da distância, de acordo com o nível das queixas do meu joelho direito.

Por sugestão do Valente, pedalar virou oração diária. Como resistência às tentações do sedentarismo, a inspiração veio de um homem de fé. Marcelo Sório é outro amigo que fiquei quase duas décadas sem ver. A pandemia nos reconectou e suas histórias me atingiram como fábulas franciscanas. Um sujeito que pedala 70 quilômetros e fala disso como um sacerdote. Sem empáfia, com brilho nos olhos, com amor no relato dos destinos percorridos.

Mari abraçou a causa paterna. Uma hora diária, às vezes mais. Minha irmã Catarina e meu cunhado Evandro foram parceiros em parte do caminho. Pedalar é um respiro de final de noite, quase sempre por caminhos alternativos.

Quando não posso ir à casa branca ou ver a cidade da bicicleta, os pés molhados me sustentam. O joelho reivindica menos impacto. Daí, a ideia de caminhar no mar com água pela cintura. Neste terceiro ritual, o parceiro se chama Vinicius, meu filho de 11 anos. Uma história para outro caminho literário.

Não sou exemplo. Detesto e me policio contra a autopiedade. É uma questão de reforma mesmo, dentro e fora de “casa”. Dificilmente você me verá na rua, mas pode imaginar que carrego uma placa invisível pendurada no pescoço: “Homens e mulheres trabalhando”. Eles e elas – citados ou não –, que tentam me apontar o caminho da “cura”.

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 14 de fevereiro de 2021.

Comentários