O lugar mais antigo do mundo (Crônicas de uma epidemia # 37)

 

Crédito da foto: Diário do Litoral

Marcus Vinicius Batista

Enquanto esperava na fila do cartório, a poesia dele me divertia:

— Dois reais a bacia da laranja! Dois reais a bacia do limão! A senhora tem coragem? Quem tem coragem de vender barato? Eu tenho! Não estou nem aí! Não tenho nada no meu nome!

Com pequenas variações no texto, às vezes sem a laranja, às vezes sem o limão, ele me mantinha sorridente feito criança que se diverte com a repetição do mesmo trecho do filme. Eu olhava para os lados e ninguém na fila prestava atenção na trilha sonora. Alguns no celular. Dois amigos batendo papo. Um sujeito checando os documentos pela enésima vez.

Ali, embaixo do sol de quase meio-dia na avenida Pedro Lessa, percebi que não visitava uma feira livre há cinco meses. O tempo de ausência me surpreendeu, mas o motivo era claro: assim que começou a campanha eleitoral, eu desapareci de um de meus lugares favoritos.

Santinhos que saltam das mãos de quem tem pecados demais machucam a feira livre. Os visitantes bissextos trazem os sorrisos de vento – ao contrário do pastel – e ofuscam os pés de chinelo de dedo, os carrinhos de metal ou de pano, as rodas de gente salivando enquanto o caldo de cana flutua da jarra de inox para o copo de plástico.

Adoro o passeio por feiras, que estão conosco desde que decidimos nos aglomerar e vender alguma coisa. Em viagens, não troco uma comida de rua por nada de grife. A feira do Sesc, por exemplo, é o território das miçangas que me carregam e das comidas de distintas certidões de nascimento. Uma das minhas primeiras matérias foi na feira da avenida Francisco Glicério, num sábado pela manhã, há quase 30 anos, por ordem do professor Dirceu Fernandes Lopes.

No entanto, minha amizade com as feiras se fortaleceu quando me tornei professor, há quase 20 anos. Descobri o prazer de atravessar a feira da rua Oswaldo Cruz, às terças, quando retornava da aula para casa. O caminho se tornou mais longo, porém divertido. Encontros inesperados com amigos, gente de todos os tipos, gente que sua de verdade, testemunhos de negociação, as flores do final das barracas. Minha procissão era semanal. Depois, mudou para o sábado, na da rua Delfim Moreira, com ataques cirúrgicos para garantir o almoço-pastel.

Assim que sai do cartório, escolhi o trajeto previsível. Resolvi atravessar a feira para não comprar nada. Somente olhar as pessoas, ouvir a cantoria dos preços em queda, sentir o cheiro de peixe, de algumas frutas, namorar um ou outro tempero.

No finalzinho dela, veio o segundo choque no palácio da memória. O carrinho estava ali, sozinho, encostado no canteiro central da avenida. Ao me aproximar para matar um desejo de semanas, fruto de conversa com dois amigos diferentes, me dei conta que estava sem dinheiro vivo. Só dinheiro de plástico.

A segunda olhada resultou no sorriso de conquista. A maquininha verde brilhava ao sol. O dono do carrinho se materializou. Confesso que desisti de saber o segredo do mate com abacaxi e limão dos carrinhos. Brinco que, às vezes, é melhor não saber. Não consigo fazer igual. Amigos também abandonaram a ideia e se contentam em produzir cópias mal acabadas da bebida.

Em menos de cinco minutos, o dono matara minha sede, recebera o pagamento virtual e me permitira seguir para casa, com dois desejos realizados numa ida ao cartório só.

Carrinho de mate com máquina de cartão? Um feirante criativo? Tradição e modernidade que se fundem ou – o mais provável – eu que me perdera no tempo das memórias afetivas. Tanto que me esqueci de pedir o chorinho.

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 28 de fevereiro de 2021.

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