O jardim secreto (Crônicas de uma epidemia # 39)



Marcus Vinicius Batista

Assim que contornei o muro da escola Olga Cury, ouvi o sussurro. Eram duas vozes, uma mais velha, outra mais aguda, talvez feminina. Os risos se revezavam com o tom mais didático do sujeito mais velho. Era meio da tarde, e o calor me empurrava para a sombra como tática de sobrevivência na ida e na volta do supermercado.

Meus ouvidos fofoqueiros (oficialmente, jornalísticos) se aguçaram conforme eu me aproximava. Mesmo assim, não conseguia escutar o diálogo, somente as vozes e os risos. No meio da quadra, eu os vi, quase transgressores, agindo como se fosse normal, alheios às poucas testemunhas, alheios a mim.

— Força, menino, sobe mais!

— Tô conseguindo, vô! Tô conseguindo (e gargalhava).

— Vai, mais um galho, mais alto. Aeeeeeee!!!

O menino, com cerca de sete anos, estava descalço, só de bermuda. Ele se agarrava no galho acima e colava a barriga no tronco da árvore, na tentativa de pegar impulso. O avô, com pés no chão, olhos no moleque e passado em revista, empurrava o neto pelas pernas. Os braços esticados eram o limite da ajuda. O menino teria que macaquear sozinho dali em diante.

O Jahu, conjunto de prédios no bairro da Aparecida, em Santos, é meu jardim emprestado há alguns anos. As ruas, cá entre nós, deveriam se chamar alamedas. Passo por lá todos os dias, feito beato na missa. Desvio o caminho para não me desviar do prazer quase pecador de desacelerar num cotidiano que insiste no culto à pressa.

O trajeto sempre muda. Novos contornos, outras velocidades, paradas estratégicas. Na semana passada, estanquei diante de um besouro que fugia do calor do concreto, ansioso por meio metro de grama. Foram uns segundos de conversa com meu filho Vini, de 11 anos, temperados com uma pitada de fantasia. Quem sabe ele se lembra destas caminhadas que me aliviam do sacode emocional da pandemia?

O oásis urbano tem o hábito de me avisar: olha, o interior é aqui. Relaxe, reduza o passo, observe e sinta. Numa esquina, um senhor limpa a casinha de passarinhos, trocando a banana de ontem pelo mamão de agora. Não dá cinco minutos e o refeitório ao ar livre recebe o revezamento de clientes de asas.

Na vias protegidas pelas árvores, até a mentalidade de quem passeia com cachorros funciona em outro ritmo. Em vários trechos, os moradores adaptaram e instalaram garrafas pet, que viraram suporte para sacolas de supermercado. Calçadas impecáveis, nenhum dono de cachorro pode dizer que se esqueceu do essencial.

O Jahu não é apenas um lugar de passagem. Eventualmente, ele é o endereço final, onde moram bons amigos, como Eduardo Cavalcanti, Thaís Macedo e Aline Porta Nova. Gente que só elogia onde vive, que não troca o vento e o respiradouro dos corredores verdes por vigas e ferros gourmets.

O menino e seu avô ressuscitaram uma pintura que eu não apreciava há dez anos. Na ocasião, um abacateiro na avenida Pedro Lessa reunia todo sábado meia dúzia de crianças. Até tábuas foram instaladas por um morador para que a molecada simulasse, na medida do possível, a casa na árvore. O morador faleceu, as crianças cresceram e o abacateiro foi diluído na paisagem nebulosa de escapamentos de caminhões à margem do porto.

Não sei qual era a árvore onde o menino grudou sua futura lembrança com o avô. Não achei necessário perguntar seus nomes ou puxar papo. Não me lembrei de fotografar. Só parei de andar e, em silêncio, vi. Se o menino chegou ao ponto mais alto da árvore, não fiquei para conferir. A última coisa que desejava era atrapalhar o passado em forma de presente.

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 28 de março de 2021.

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