O ano que não terminou (Crônicas de uma epidemia # 35)




Marcus Vinicius Batista

Esqueça a matemática. Rasgue o calendário. A virada de ano foi, mais do que nunca, um ato simbólico. Uma alegoria que nos invade com duas ilusões até certo ponto tradicionais, mas que me soam definitivas neste final de janeiro.

A primeira ilusão, com jeito de blefe, é o fechamento para balanço feito loja de departamento. Fizemos contas, tentamos apagar parte das dívidas dos cadernos de contabilidade emocional, renegociamos outros débitos com nossos credores internos, prometemos nova política de vida. É um discurso, nada mais. Se vai virar prática, depende mais do marketing pessoal do que de atos concretos.

O outro truque – que desconfio ser pensamento mágico, mais nocivo do que cortina de fumaça – é o desenho do ano que chega. Aí escorregamos da escada e seguimos quicando nos degraus. O tamanho do tombo e dos ferimentos depende do quanto nossas fantasias nos dominam.

Não dá para acreditar que nossas fantasias ganharão corpo em 2021. Qualquer produtor de cinema a fim de ganhar um extra apostaria em 2020 versão estendida. Repeteco, mais do mesmo, aquele trecho que criança pequena assiste até a exaustão dos adultos.

Tornou-se utópico estabelecer metas, fazer planos, construir estratégias, fomentar táticas diante de um começo de ano no qual erros crassos, mesquinharias e mediocridade social, temperadas com doses de truculência e irresponsabilidade, compõem o cardápio do dia. Cardápio com variações para colocar em xeque qualquer atestado de saúde mental.

Os políticos – obesos pelo voto, raquíticos em ações – viajam de volta à 5º série (hoje 6º ano), com suas picuinhas e empurra-empurra de valentões na hora do recreio. Só falta o xingamento de mãe e o aiaiai da molecada que torce pelo primeiro soco. Para os brigões, sobra oxigênio no palavrório na mesma proporção que o ar se torna rarefeito nas UTIs.

Na releitura de 2020, os comerciantes choram e contam moedas, paralisados com os horários que sofrem mutações mais aceleradas do que o Covid-19. Placas de aluga-se e vende-se se multiplicam como vírus de uma economia que adoece sem perspectivas de vacina. Aliás, já se fala numa terceira temporada desta série de (não)ficção científica para 2022.

No mundo fora dos gabinetes, o ano que não terminou sobrevive nas praias e estradas lotadas, nas máscaras que decoram bolsas ou se escondem em bolsos para negar, amenizar, passar o pano ou qualquer outra expressão para um comportamento que não é saudável.

A vida permanece online ou reclusa para quem pode ou se vê na esperança de se proteger. A vida permanece arriscada para quem necessita – diante de um salário também sob risco – lidar com a loteria de uma doença que não tem expressão facial.

A grosso modo, desenham-se duas exceções nesta reprise de filme de fim de noite. A primeira é real na aparência e falsa na essência. São aqueles que defenderam a pandemia inexistente. Quando internados, fingiram amnésia para agarrar com unhas, dentes e carteiras a vacina, de qualquer canto, desde que injetada no próprio braço. Na essência, o comportamento de sempre, que ultrapassa os anos. 

Prefiro a segunda exceção. Acompanhar o cotidiano de quem viu neste capítulo inacabado da História um chance de se relacionar melhor. De viver melhor com os outros. De sobreviver para ver a próxima página, ainda sem prazo para ser escrita.


Obs.: Texto publicado na AT Revista, em 31 de janeiro de 2021.



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