O amor de uma vida (Contracapa #46 ou Crônicas de uma epidemia #34)


Marcus Vinicius Batista

Não me lembro quando foi a primeira vez que o encontrei. É bem provável, sem grandes surpresas ou reviravoltas, que tenha sido um presente dos meus pais. Lembro-me com clareza de ganhar, na sala do apartamento onde morávamos, novos exemplares do gibis (como se chamava na virada para os anos 1980) da Turma da Mônica ou da Disney, mas não me recordo dos meus primeiros livros.

Na escola, lia com prazer cada livro recomendado pela professora Luiza Helena, rigorosa na gramática, mas uma profetisa na Coleção Vaga-Lume, da editora Ática. Pouco antes da pandemia, reli dois deles – “O Escaravelho do Diabo”, de Lucia Machado de Almeida, e “O Cadáver ouve rádio”, do Marcos Rey – emprestados pelo Alfredo Bouzas, amigo de infância e também formado no mesmo ritual literário.

Passei a comprar livros com voracidade depois que fui estudar Jornalismo, aos 17 anos. Brincava com minha mãe, que perguntava se eu daria conta de ler tudo; logo ela, uma leitora consistente, de quem guardo diversas obras do extinto Círculo do Livro, o avô dos clubes atuais de leitura. Eu respondia que poderia gastar meu dinheiro com drogas pesadas, em vez de livros. De certa forma, o fiz. Hoje, sei o quanto vale uma leitura viciante ou um livro que nos entorpece.

Nunca imaginava que poderia trabalhar com livros. Caíra na armadilha que ainda envolve muitos leitores, a de que os livros são vacas sagradas, que devem ser admiradas, jamais tocadas. A vaidade em torno da literatura – principalmente de muitos escritores – é estimulada pelo leitores, claro, mas a responsabilidade é de quem os escreve, nunca do livro.

Cheguei a ter, por volta de 2010, 2012, mais de dois mil livros. Além disso, acumulava revistas, jornais que um dia poderia ler, feito aquela desculpa esfarrapada a respeito da roupa que talvez seja usada no casamento daquele primo distante (e que provavelmente não vai formalizar um matrimônio).

A partir de 2015, iniciei o programa de redução de vida. Não é uma filosofia minimalista, mas a busca pelo essencial. Doei livros para alunos, presenteei amigos, colegas, conhecidos. Mesmo assim, continuei com 11 prateleiras e duas estantes. Sigo com livros em todos os cômodos do meu apartamento. O número de obras é bem menor.

A fase atual é de mudança. As prateleiras diminuíram e serão vendidas, inclusive. A meta é manter somente as duas estantes, incluindo os livros dos meus filhos. Os livros que não couberem encontrarão seus leitores em outro canto.

Aprendi, com o tempo, que os livros devem buscar seus leitores. Como dizia minha avó, para todo pé sujo existe um chinelo velho. Assim, os livros começaram a voar das prateleiras. Presentes, doações, vendas. É mais um capítulo de um caminho onde sempre um livro me acompanha, na praia, no ônibus, no médico, na sala de aula, no avião, até na fila do banco. Quem está adormecido na prateleira merece outra trajetória.

Leio todos os dias, mesmo nos piores momentos da pandemia, quando a concentração falha. Escrevi livros e, atualmente, tenho o prazer de revisá-los, editá-los, publicá-los. O livro, meus amigos, é um caso de amor e um alívio para a dor, o sofrimento e a saudade. O livro sempre nos salva!

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 17 de janeiro de 2021.

Comentários

Estou remetendo a mais gente; parei aqui.