Lucy e o silêncio do paraíso (Crônicas de uma epidemia # 44)


Marcus Vinicius Batista


Quando me sentei com o livro de Silvia Plath nas mãos, percebi que estava sozinho. Eram pouco mais de três da tarde, e todos tinham seus compromissos, do cochilo pós-almoço a reuniões de trabalho, de visita ao cartório em Santos a desenhos animados na TV a cabo.

As águas repousavam há menos de cinco metros. Eu já havia conversado com elas sob o sol da manhã, de modo que poderia resistir à tentação e à temperatura gelada daquela hora. Até o limoeiro resolvera parar de balançar seu esqueleto. O vento dera uma trégua e meia dúzia de limões-cravo me abençoaram na caipirinha prometida por uma das moças. Aliás, com pedaços de morango na segunda opinião. A certeza de que o presente não era do meu planeta.

É difícil um escravo do urbano perceber, dentro da cidade, quando a própria cidade não existe mais. E notei. Os vizinhos ocasionais me avisavam desde o dia anterior, seja o beija-flor que cutucava a água enquanto fingia que eu era invisível. Sejam as maritacas, que tiraram folga e foram se perder na mata logo atrás, da cor da roupa dos ditadores, da mesma cor irônica da liberdade. O comitê de boas-vindas se completava com os quero-queros e até as pombas, indesejáveis quase sempre, mas ali figurantes competentes.

Mal abri o livro e ela chegou. É quem manda em tudo. Longe de ser autoritária, ela te convence com seus olhos de pedinte. Ela diz – calada - tudo o que você precisa saber para respirar o paraíso. “Aproveite, meu amigo, aqui é assim todo dia. Mas nunca se esqueça de que você vai embora. Parta diferente de como chegou!”

Lucy se aproximou. Nunca tagarela. Nunca dá sermão. Nunca é professoral. Nunca é a dona da tábua das regras. Ela somente se senta ao meu lado e me aponta com a cabeça o que deseja. Se eu disser não, tudo bem. Obedeci. Como poderia negar um instante de prazer para quem me indicou aquele retrato do que a vida poderia ser mais vezes?

Lucy não interrompeu minha leitura. Cordial, ela sabia que eu faria quatro coisas ao mesmo tempo. Ou melhor, de maneira alternada para desfrutar de cada uma delas. Se eu não conseguisse, ela me perdoaria. Eu lia, olhava para a paisagem camuflada no meio do Guaiuba, em Guarujá, coçava as costas de Lucy e escutava o silêncio. Não há melhor dia de folga do que no meio da semana, prazer com um certo egoísmo do qual prometo me curar.

Lucy ouviu que suas amigas chegavam. Saiu discretamente e se postou no corredor, assim poderia me manter sob os olhos dela, me lembrar de que a fotografia daquela experiência era rara e observar quando elas se aproximassem.

As duas vieram em diálogo, um assunto que as fazia rir. Elas representam, para mim e para Lucy, o que significa amor maduro. Um encontro que centrifuga amizade, lealdade, acolhimento e cumplicidade. Amor.

Lucy correu na direção delas. Saltava como se as duas horas de ausência fossem dois anos. O rabo chacoalhava em tal velocidade que chicoteava os dois lados do dorso. Lambadas carinhosas da convicção de que a coceira a seguir seria de mãos femininas.

Minha leitura terminara por hora. Tínhamos novidades de anos a compartilhar e das últimas duas horas a atualizar. Com as águas da piscina em repouso, eu as esperaria por mais alguns minutos. Enquanto isso, Lucy se sentou ao meu lado outra vez. Mais uma coceira, por favor, como ritual do silêncio no meu mundo provisório da tarde de sexta-feira.


Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em 9 de maio de 2021.

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