Exaustos (Crônicas de uma epidemia # 32)





Marcus Vinicius Batista

Estou cansado. Não é um cansaço comum, que oito horas de sono remediam sem dificuldades. É uma espécie de exaustão pandêmica, contagiosa, de imaginário e vida coletivas.

Em nove meses (hoje, quase 14), é possível conhecer a fundo o cardápio de sintomas que caracterizam este morde e assopra de queimar energias. É um desgaste integral, holístico, no qual os caminhos de entorpecimento se revezam na tarefa de sugar forças. Sinto-me como se diversas sanguessugas se alternassem com suas ventosas em minhas costas. Todas conspirando para fraquejar o hospedeiro, sem derrubá-lo de vez, de mantê-lo esperançoso antes do golpe seguinte.

Às vezes, peço pelo cansaço físico, aquele de fácil identificação via dores musculares, passíveis de analgésico, repouso, banho e chá revigorante. Uma boa refeição e uma conversa com quem se ama fecham o pacote de regeneração.

Quando o cansaço é emocional, consigo detectar o que me aflige, peço ajuda a quem confio e opto pelas atividades que me permitem descansar dos problemas internos. Um bom livro, escrever, assistir às histórias consistentes nas séries e filmes são pílulas de vitaminas, num coquetel capaz de afastar as viroses de sentimentos que podem ser tornar patogênicos.

A exaustão pandêmica comprime as duas versões anteriores num formato de difícil diagnóstico. Esta exaustão alcança não somente o indivíduo, mas conecta o sofrimento dos amigos, parentes e até pessoas com relacionamentos mais distantes. Ela não permite união para a resistência, ela divide para conquistar, ela isola para massacrar.

A exaustão se esconde nas entrelinhas do home office, nas curvas da vida online, nos algoritmos das redes sociais, onde podemos testemunhar o pior do humano, o mais ilusório dele. O sorriso da perversidade.

A exaustão nasce no mundo lá fora, se aloja em nossos ambientes, altera nossa percepção como se fôssemos tolos por tentar sobreviver à pandemia como se ela existisse. E existe!

Estou cansado dos que se deleitam na negação que esconde o pavor, que camufla o egoísmo, que cultiva a intolerância e semeia a truculência. Estou cansado dos irresponsáveis que celebram – desconfio que com consciência – a desgraça alheia, que ignoram os velórios, a ausência do direito ao luto, a dor de quem se deita amarrado por tubos médicos, de quem espera por mais um abraço, um beijo e se apavora a cada boletim da saúde que o vírus corrói. O vírus faz o que nasceu para fazer. As criaturas que o negam escolhem a crueldade.

A exaustão nos deixa, de certo modo, impotentes. Não tenho a presunção de alterar comportamento de ninguém. Preocupo-me com meu quintal e as flores que me fazem levantar na manhã seguinte e persistir. O problema é que se tornou impossível ignorar as ervas daninhas – com mandato ou sem -, que gargalham na mesquinharia e na ganância.

Esses sujeitos sabem o que fazem. Quando cruzo com eles na calçada, onde não tem poder algum, esses seres abaixam a cabeça, num confissão de movimento corporal. É mais um momento em que penso em meus amigos com restrições financeiras, dificuldades emocionais, contando as moedas e as doses de energia para não sucumbir diante das estatísticas que teimam em subir e das histórias que insistem em se repetir nos hospitais e cemitérios.

Estou cansado. Amanhã, vou me levantar como muitos que precisam continuar. Só não me peçam para respeitar quem prefere espancar a cidadania e a saúde alheias. Para esses, talvez não haja vacina, não a fabricada nos laboratórios, e sim a da decência.

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna - Santos), em 20 de dezembro de 2020.



Comentários