É anjo que se chama? (Crônicas de uma epidemia # 48)

 


Para F.

Marcus Vinicius Batista


Não acredito em anjos. Desconfio de gente com sorriso angelical. Tomo distância segura de quem infantiliza a voz, fala em tom monocórdio e deseja ser mais Poliana do que a própria personagem. As asas de papelaria e todo o resto beiram a falsidade, ultrapassam os limites da chatice enquanto mascaram o controle, a patrulha e até uma maldade dos infernos.

Prefiro os anjos da guarda. Esses são mais humanos. Falhos, ranhetas, professorais às vezes, acendem vela para maus defuntos (que acenderam primeiro, claro, numa barganha sempre desigual) e trocam de protegidos muitas vezes na vida. Tudo tem limite, até a proteção. Mas protegem com esforço máximo, independentemente do passado, do presente e do desejo de futuro do protegido.

Fiquei muitos anos sem encontrar o meu. Para alguns, é um preto velho. Para outros, um caboclo. Confio nos dois, em outros planos, porque nesta planície é ela, aliás. Uma mulher mais experiente do que eu, sete anos, número cabalístico para quem adora misturar numerologia com anjos. Ela não. Adora dizer que se encontra em razoável estado de conservação. Sempre que pode, fala por e pela poesia.

Minha lembrança mais antiga é vê-la em cima de patins, aqueles old school, com quatro rodas e freio na frente. 16 anos de idade, no auge da imortalidade. Eu a admirava feito criança que era, mas consciente que nunca teria tal habilidade de rodar daquele jeito sobre a Terra.

Depois, quando ela voltou do outro lado do oceano, onde protegeu gente de vários quilates, ela me trouxe um símbolo de conto de fadas. Apaixonado por futebol, tenho até hoje a marca italiana de um dos sete anões, o Dunga. Vai falar mal dele que ela incorpora outro anão, o Zangado!

Reencontrei meu anjo da guarda há pouco mais de três anos. O tempo é referência apenas para mim, que se degrada com prazer das novidades em tese maduras, sem arroubos de juventude. Ela, a guardiã, congelou no formol, lindíssima e elegante. Uma mulher classuda, como diria minha mãe, daquelas que um vestido basta para derrubar uma festa.

Nosso reencontro com ela, ao som de quem um dia chamou de música do diabo, se deu numa pista de dança, onde ela se acabava com um vestido que resistia aos movimentos de desafio ao espaço-tempo. Não confunda pureza com singeleza. Não misture ser de outra dimensão com isenção de pecados. O anjo da guarda só pode ser visto, sentido, percebido por nós se o entendermos como demasiado humano. Mais até do que a gente.

Dizem que os anjos não demonstram sentimentos e emoções. O anjo da guarda que conheço sente pelos poros. A gargalhada é única de tão sonora. A amorosidade e a indignação com o que o homem faz por Deus, com Deus e apesar de Deus a tira deste mundo. Demasiado humana, para ser redundante. Descreve com carinho todos os amores, familiares ou não. Com respeito. Até para enumerar defeitos (quase) imperdoáveis, há delicadeza na voz e nas palavras.

Esta mulher me protege, mas não estabelece hierarquia. Conversamos no mesmo nível. Sentados no sofá e cercados por dois cachorros, que protegem os portões assim, assim. E com nome de gente santa, como aquele que precisa ver para crer. Mais evoluída, ela mais escuta do que fala. Preciso me policiar para me calar. Ali, não prevalece desigualdade, o que seria desleal numa confusão com proteger ou acolher.

Já chorei de forma desavergonhada diante dela. O ambiente era confortável, eclético nos objetos que simbolizam as paixões multiculturais. Mesmo sem asas, ela voa por todos os cantos. De New Orleans, me trouxe as caveiras que tanto me levam à essência, ao primitivo. Herdou ser nômade dos pais, aposto, o tal fogo no rabo de viajar, a curiosidade de experimentar, a ânsia de conhecer. E herdou também o retorno do filho pródigo à terra de suas origens.

Este anjo da guarda, por motivos que desconheço ou por caminhos que ainda não entendi por completo (acredito que nem ela), esteve do meu lado em dois momentos essenciais. Poderia dizer que foi a mão de Deus, mas aí quebraria o protocolo angelical. Foram instantes de encruzilhada na vida, a minha, que só cabe a nós dois assimilar, cabe a mim agradecer e não esquecer, cabe à dupla renovar como gesto de amor fraterno. O anjo da guarda no qual acredito é uma manifestação de irmandade, de sentimentos profundos entre primos, entre irmãos. Ausência de hierarquia ou doutrina.

Nunca comprei a balela de que Deus era brasileiro. Mas meu anjo da guarda é sim e – olha – está a dois quilômetros de mim, na mesma cidade. Nada de trombetas celestiais...o som é um bom jazz do sul dos Estados Unidos. E um bom vinho, acompanhado de queijo brie ou gorgonzola. Eu e meu anjo da guarda, claro, somos também filhos Dele.

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