As mudanças (Crônicas de uma epidemia # 47)

 

Marcus Vinicius Batista

Júnior e Luna ocupavam o sofá para uma brincadeira que usava o tabuleiro de xadrez. No sofá menor, Nara se sentou junto com Tom, ele sem o poder de escolha, por enquanto. Tom nascerá em janeiro. Eles haviam me visitado para um café e retirar uns CDs com um amigo-vizinho. Os CDs, na verdade, são a desculpa para o encontro. Costumamos nos ver de vez em quando, um na casa do outro, jamais em lugares públicos.

Se a pandemia deveria representar mudança de vida para melhor, Júnior, Nara, Luna e Tom ganham o campeonato. Tudo bem que de 1 a 0 aos 44 minutos do segundo tempo, com gol de carrinho, mas sem perder a ternura. Do ano que parecia perdido para o ano que termina cheio de esperanças. Do ano que pintava derrota, choro contido, silêncio e luto para o ano que se inicia cheio de vida nova.

Os quatro são o exemplo de como as reviravoltas significam parte do caminho e que não há como desperdiçar esforços para se controlar o imponderável. Basta viver com os dois pés firmes em cada degrau da escalada.

Júnior viu seu projeto de vida profissional desafinar em dois meses. Em meio ao aniversário de Luna, o primeiro em que fui virtualmente, o Lobo Estúdio fechou as portas. Como receber músicos em ambiente isolado acústica e sanitariamente? Eram 18 anos de uma biografia feliz, com união de pessoas, criações coletivas, intersecções artísticas, uma casa para todas as gentes.

Júnior e Nara tentaram medidas práticas. Fizeram a primeira mudança. Entregaram o apartamento e levaram as escovas de dentes e outras coisas mais pesadas para o estúdio. Se não haveria ensaio, pelo menos teriam saraus em família, além de Luna explorando todos os cantos. Dormir seria mais uma etapa da aventura.

Tempos depois, Júnior percebeu - ao longo das madrugadas criativas de experimentação musical - que aquela coceira no peito, que de vez em quando ressurgia, num vai e volta desde o ano passado, trazia um grito. Era a encruzilhada que se divide entre a hora de parar e a hora de insistir por quaisquer motivos que não se sabe mais.

Júnior e Nara escolheram mudar novamente. Fechar o estúdio, com ou sem vírus. Recriar suas vidas artísticas. Colocar as finanças em ordem. No meio do caminho, outra porrada: a morte de Dilceu, pai do Júnior. Luna pôde conhecer o avô semanas antes. Algumas das contas foram acertadas entre pai e filho. Só que a morte nunca fornece conforto absoluto.

O luto conviveu com a mudança. Outra mudança de endereço, a segunda no mesmo ano. Parte dos equipamentos foram vendidos, as trouxas nas costas e os quatro – Tom já estava no grupo, aposto que para equilibrar a balança de quem chega e de quem se vai – seguiram para o apartamento do Seu Dilceu. Fariam a transição dos objetos dele e do imóvel.

O ano de incertezas virava um ano de transições. O final de cada capítulo passou a ficar mais nítido, com enredo costurado, dissipando as dúvidas, ainda que alimentando o medo, tirando o sono. Júnior e Nara tinha somente a certeza de que nenhuma ponta ficaria solta ao final de 2020. O medo era alerta com tempero de serenidade.

Numa semana, Júnior me contou: “Estamos na rua procurando apartamento. O do meu pai será vendido.” Alguns dias depois, vejo no Instagram a foto de um imóvel vazio, com Nara sentada no chão. Mudança feita, casa nova. Tom chegará em novo endereço.

Júnior e Nara são um exemplo para mim. Já me permitiram, entre outras coisas, escrever diversas crônicas. Nesta pandemia, foram duas ocasiões literárias. Mas este texto, em especial, não precisa de maiores firulas para que o leitor compreenda o quanto eu os admiro por olhar de frente para quaisquer mudanças, boas ou ruins.

Eles suaram a fervura do caldeirão de sentimentos e emoções que nos marcam durante estes nove meses de pandemia, isolamento, quarentena, home office, vida online. Alegrias, surpresas, lágrimas, sorrisos, chegadas e partidas. Perdas e renascimentos.

Júnior e Nara são meus amigos. Eu me orgulho deles. Luna, a infância pulsante, e o Tom, o garoto que se aproxima, são sobrinhos postiços.

Assim, derrubamos um vírus. Assim, derrubamos seus hospedeiros de más notícias.

Obs.: Texto publicado, originalmente, em dezembro de 2020, no livro Os Jardins de Sucupira. 

 

Comentários

Texto com a sensibilidade e visão, marcas registradas do cronista. Como sempre. Abs a todos.