Ânsia de viver (Crônicas de uma epidemia # 42)

 


Marcus Vinicius Batista

Ela acordou dolorida. Dormiu pouco, cinco horas no máximo. Mas não se sentia doída pela noite de corpo inquieto regada à trilha sonora de filme de amor. As pernas até estavam bem, diante dos últimos dias de musculatura inflexível e caminhadas restritas.

Ela se sentou na cama de modo doloroso. Não pretendia se levantar, mas seu futuro próximo exigia uma agenda de compromissos junto com as crianças que riam pela manhã de muito a fazer. O peito estava em montanha russa, diante das últimas horas em que a musculatura cardíaca ameaçou parar e o choro teimou em represar.

Ela se levantou, ouviu o burburinho infantil, imaginou quem a clamava pelo celular. Era ele. Ele havia morrido há pouco tempo. Ela o ressuscitara a cada letra de música, a cada palavra de afeto, a cada vírgula bem ou mal tocada, uma narrativa que se paralisara pela recusa de um ponto final. Os dias do mês foram mágicos; o anteontem, espiritual; o ontem, aterrorizante.

Não havia jeito de respingar uma lágrima. Não haveria escoadouro para a mágoa das horas anteriores. Se ainda fosse uma febre...Se ainda pudesse vomitar e despejar tudo privada abaixo. A dor estava ali de pé, olhando de volta, o que a alimentava de aflição porque jurava ter se acostumado àquela sensação de impotência com o passado.

Presa no topo da montanha, só existia um caminho viável para ela. Falar e tentar, resistir ao frio emocional com muito otimismo, reescrever o presente da manhã. Não desistiria das escolhas da última semana.

Como sobreviver às alternativas da semana passada se mal conseguia entender como seria o próximo domingo? Em qual endereço se fixar? Com quem conviver? Sempre independente, a vida desta vez deu a ela uma carta inativa, que só poderia ser aberta com a anuência alheia. Uma nova fase de perguntas e respostas. As perguntas seriam feitas por desconhecidos diplomatas ou, no melhor cenário, por gente que mudou de comportamento. As respostas deveriam ser adequadas, e não as que realmente acreditava.

Olhou para os braços e notou que os hematomas emocionais ganhavam cor outra vez. Não seria como 2018, prometera a si mesma. Aquele amor enciumado desistira e desejava assombrar no capítulo errado. Se tivessem que ficar no corpo, que os hematomas ficassem em tempo provisório, que sumissem com o desfecho do dia, que desintegrassem com a palavra de amor da novidade. Era hematomas de outra natureza, certeza.

Ela tinha a sensação de ressaca, sem ter ingerido uma gota. Era a represa de água salgada em mim, pensou. Duvidava se conseguiria colocar para fora. O histórico indicava o oposto. Apontava o hábito de remoer por tempos além do necessário. Mas tinha uma esperança. O outro!

O outro poderia vir para ajudá-la. Vir sem sair de onde está. Vir pelo que os aproximou. Chegar pelas letras, correr pelas palavras, firmar as vírgulas como cajados na peregrinação até ela. Ah, o outro vai ralar para chegar. Assim, não haveria ponto final. No máximo, a união entre a vírgula e o ponto, naquele intervalo maior sim, mas que garantiria a continuidade do que sentia no mesmo dia, sem deixar para amanhã de manhã, quando teria que levantar outra vez.

Ela sabia que os pés de baile ficariam em ponto de dança, doloridos ou dolorosos. Alongaria a coluna com prazer, com os estalos de liberdade vertebral. O corpo entregaria a mensagem: ela era ânsia de viver!

Comentários

Anônimo disse…
Como não ansiar pela vida, quando ela traz no horizonte um farol de luz tão forte que até a noite desiste de escurecer?
Hta Bi disse…
Texto lindo e ainda tem uma bailarina na ilustração. Perfeito que chama?