A nascente (Crônicas de uma epidemia # 43)



Marcus Vinicius Batista

A trilha já tinha as marcas dele, que suava em bicas. Respingava mais do que poderia respirar. A camiseta grudava no corpo por conta da caminhada mais longa, mal planejada, improvisada no desconhecimento do caminho. Os pés queimavam das bolhas que os dedos pariram. Arrogante, pensou que poderia andar com as intenções.

O menino não poderia parar até chegar lá. Ele era mais lento do que os demais, mas sempre cumpria a rota. Persistente, disse a mãe. Incansável, exagerou o pai, numa palavra que levou uns segundos para entender como elogio.

Ele não era exatamente um menino. Ela o chamava assim. Os amigos juraram que ela não existia. Amigo imaginário depois de velho?, um deles brincou. O menino pisava e adormecia as dores pela fé. Chegaria. Não seria a lebre, ainda mais naquele estado de fiapo. Seria a tartaruga, com a mochila cheia de melancolia como casco. Seria também a cobra, não como alguém ardiloso, mas a criatura que trocaria de pele quando a encontrasse.

Ele perdeu a noção do tempo. Não percorria uma trilha assim desde o início do século. Preparou-se com exercícios, alimentação razoável. O problema é que a trilha não exigia tanto do corpo. Reivindicava fôlego da alma. Os pés sangravam o tanto que qualquer peregrino de primeira viagem sentiria. O sangramento, no entanto, não se estancava por dentro. A hemorragia interna só teria sentido na medicina da mata. A metamorfose só viria se encontrasse a nascente.

Os braços, percebeu depois, ficaram anestesiados. Como a trilha era estreita, o menino os raspava na vegetação. Não carregava nada nas mãos. Nem água. Muitos espinhos abriram pequenos cortes. Uma sangria que ele entendia como parte da travessia. Limpeza. Por ali, sairiam as angústias, as frustrações, quem sabe sua estupidez. Ele saberia ao primeiro olhar da moça. Saberia...

Os respingos que brotavam da testa se misturavam com as gotas vermelhas dos braços. Sorriu ao se ver parcialmente rosa. Apertou o passo, pois o cheiro da vegetação dava a sensação de chuva. Que chovesse! Lavaria mais rápido as impurezas de uma carcaça que não sustentava mais a vida a seguir. No fundo, o temor era pelo anoitecer. Não sabe de onde veio, mas passou a sentir calafrios com a escuridão, não amadurecia de maneira alguma o olhar na penumbra. Desconfiava que isso mudaria ao encontrá-la.

A trilha se fechava ainda mais. Ali, não tinha máscaras. Deixou o rosto à mostra. Que sangrasse também. A recompensa se aproximava. Tudo seria aliviado. Sede. Fome. Cansaço. Dor. Tudo seria renovado. A vida. O amor. A generosidade. O espírito.

Ouviu pela primeira vez o som da água. Não era chuva profetizada pelo menino. Era água corrente. Aquela de quem tinha ouvido falar. Não era causo. Pelo menos, o cenário não era lorota do velho que o acolheu, ouviu, sorriu e explicou: “Vá até ela! Só assim poderá ser sua! Menino, cuidado...sua é partilha. Você e ela. Sua nunca é posse no final da trilha.”

Ele se lembrou das palavras do homem – o nome do sujeito se perdeu – quando a trilha terminou. Era uma pequena clareira. O Verde o cercava. Não via a origem do som. A água seria mais uma ilusão numa pilha de decepções.

Sentiu-se uma fraude. Quando assentou a culpa, sentiu-se vítima de uma fraude. Quem o contou da maravilha mentiu. Aquele sujeito ganharia o que se não o veria sofrer ao longo do trajeto? Como não enxergou o conto da carochinha, nome merecido para o menino que se comportou feito moleque?

Ele estava exausto. Tirou a mochila das costas. Mais leve, sentou-se no pedacinho de terra que se espremia refém do verde da mata. Respirou até normalizar o fôlego. Deixaria os pés para depois. A volta faria mais estragos. Deitou. E quase saltou de susto quando fechou os olhos. Ouvia a água outra vez. Bem perto. Dava para sentir o frescor.

Abriu os olhos. Nada. Silêncio e o mesmo ar modorrento. Cabelo encharcado. Camiseta peguenta. Os pés matando de ardência. Encostou a cabeça no chão. Ao fechar os olhos, o gosto de água na boca com o alívio que só os viajantes testemunham. O menino entendeu a lógica. Tinha que esquecer sua dependência sensorial. Explorar os outros sentidos, com a compreensão que, deste jeito, veria com transparência.

Nunca soube se dormiu. Chegou a desconfiar de alucinação. Preferiu comprar a versão dele próprio, de percepção de consciência. Dele próprio em termos, pois o velho falara nessa via de acesso ao interior da floresta. O fato é que ele visualizou a nascente e jurava imaginar o leito caudaloso do rio no ápice da correnteza.

O menino se deixou levar pelas águas. Sentiu-se purificado. Os pés, amortecidos ou não, pararam de doer. Os braços estavam secos no tom de recém-nascido, assim como seus cabelos e sua camiseta. As águas mudavam de forma, pareciam-se com ela, a moça, e voltavam a percorrer seu curso. Anos depois, ele crê que, no mínimo, viu o rosto dela na nascente. E como ela era linda...É linda, nas memórias do velho que hoje procura um novo menino.

Comentários

Anônimo disse…
E o que aconteceu com o menino depois que a encontrou? Fala mais!