A mulher dos meus sonhos (Crônicas de uma epidemia # 45)


Marcus Vinicius Batista


É semanal, mas sem dia certo. Não tem hora marcada ou previsão meteorológica que facilite o palpite. Aparece logo cedo, durante a madrugada, no meio da tarde. Basta a porta estar aberta que ela chega em silêncio. Não pede licença, não que precise, mas eu poderia preparar um café, comprar um bolo, torrar um pãozinho.

O cenário dos nossos encontros é sempre alegórico, como reza a cartilha de análise. Ela é discreta, não exige o centro das atenções, inclusive porque sabe com clareza quais os sentimentos que nutro por ela. Cada encontro é mais confiável do que assinatura em cartório.

Ela nunca vem sozinha. Ela é a coadjuvante ideal, que prefere as participações especiais. Às vezes, vem com a mãe. De vez em quando, brota ao lado de alguém querido. Em outras ocasiões, prefere o combo família, ao lado de pai, irmã e meus filhos. Na irrelevância do enredo, qualquer companhia deve saber o seguinte: ela vai roubar a cena.

Ela deu para me acompanhar nesta pandemia. Como é experiente, me alcança pelos atalhos para me encontrar nas curvas mais fechadas, quando os pensamentos de alterar a trajetória ou parar para descanso são ameaçados por teorias de retorno definitivo ao ponto de partida.

Esta mulher é sábia. Chega sorrindo, eventualmente se aproxima, se afasta se sinalizo que me sussurre alguma solução mágica. Compreendo – com o esforço racional da reflexão – que a sapiência desta mulher se manifesta pela presença, pelo acolhimento, pelo olhar de apoio. Ela nada contra a corrente, o que significa não se submeter às receitas fáceis, aos milagres dos estelionatários, às fórmulas que derretem no calor dos problemas.

Saber, para ela, não é responder. É iluminar de modo que eu saiba que refletir sem agir por impulso representa a lição universal do momento. Como decodificar o silêncio dela? O silêncio é justamente o código que me aponta onde se encontra a tradução, provavelmente em mim.

O silêncio traz pela mão o sorriso. Não há escárnio, ironia. Persiste a leveza de quem caminha em outra contagem de tempo, de quem desintegrou este tempo de hoje, de quem percebeu que importância e urgência não podem aparecer sempre na mesma frase, assim como fundamental e essencial. O tempo dela é infinito e limitado ao mesmo tempo. É essencial na fagulha do sorriso, no sumiço de logo mais.

Já me acostumei com a ausência de palavras dela. Hoje, é mais uma brincadeira que me diverte assim que acordo. O que será que ela quis dizer? Por que apareceu desta vez? Por que se aproximou mais? Por que prefere o carinho pelo olhar?

Traduzir suas mensagens me parecem certa petulância. Confesso que não queimo muito tempo com teorias ou avaliações enciclopédicas. A presença dela me conforta. Tá excelente! Ser coadjuvante é a ilusão que a torna sempre dona daquela narrativa que preencho lacunas para organizar de olhos abertos.

Não me lembro de nenhuma das histórias onde ela esteve todas as semanas. Rezo pelo paradoxo: sacrifico as tramas, fico com a personagem. Só me recordo dela. E me sinto bem com isso. A cada aparição semanal, aproveito a chance para renovar a vida dela em minha biografia. Para não classificar a saudade como um elemento de perda numa fase em que falta tanto.

A data e o lugar incertos também não me preocupam. Não crio expectativas diante da ausência de referências, de dicas, de mapas para localizá-la. Estar por perto é mais do que suficiente. Estar presente, então...

Eu não a encontro fora de mim há quase sete anos, quando seu corpo faleceu. Não haverá outra janela entreaberta nesta existência. O encontro entre nós será aqui dentro quando ela desejar ou assim o definir. Sem datas comemorativas, sem eventos programados, sem rotina ou agenda. A melhor parte é a qualquer hora. 

Dona Zuleica, minha mãe, deve vir na semana que vem. É o que sei. Basta dormir e sonhar...

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