A menina e a mulher (Crônicas de uma epidemia # 38)

 


Marcus Vinicius Batista

Ela é só uma menina. Ainda se empolga com o programa de TV preferido, se envolve com os personagens a ponto de falar deles como se os conhecesse desde o berço, com atestado de caráter, sem recursos de edição. Atrasa um compromisso para degustar as últimas novidades de quem virou o centro dos holofotes da semana no picadeiro.

A mulher pisa duro e se enfurece quando se vê diminuída por quem tem mais tempo de carteira de identidade e, só por isso, adota a postura do “você-sabe-com-quem-está-falando”, mesmo sem conhecimento de causa dos problemas cotidianos. A braveza pulsa contra quem se camufla na oratória que enverniza o medo do cenário que é inédito para todos os envolvidos, sejam velhos, sejam jovens.

A menina se encanta com o primeiro amor, aquele que não se compara com passado algum, a paixão que determina escolhas de caminho, que finca as raízes no presente e ignora quaisquer perspectivas, planos, sonhos, regras e convenções das algemas sociais. Sente. Vive. Convive.

A mulher chora de canto, silencia no meio do diálogo, ouve quem de direito e experiência profissional e mantém a pose para dar conta de um dia após o outro, do luto que esbarra na vida prática após a perda de uma referência. A morte pela doença com nome de signo e trópico, a morte pelo maior de todos os males, já dizia o livro de um médico indiano.

A menina relaxa e se entrega à dor quando a porta do quarto se fecha no início da madrugada, quando o sono é obrigação de alívio para o peso que afunda os ombros e tenta encurvar as costas. A menina que desmaia no meio da frase ou se derrete em água salgada ao encostar a cabeça no peito de quem a ama tanto, mas não faz barulho, apenas acolhe, porque é o que pode e deve ser feito por amor e para resistir à impotência do momento.

A mulher ressuscita na manhã seguinte, de rosto limpo, sem adereços que a incomodam e, de roupa e chinelo de dedo de gente comum, vai para a briga contra os discursos sedutores, a burocracia insensível dos papéis fantasiados de neutralidade. Ali, aprende, pergunta, consulta, pede auxílio, pois precisa dar conta da pauta do dia, muitas vezes esquecida por quem sequer sabe que um dia se lembrou.

A menina e a mulher são muitas. Elas estão todo o dia por aí, perto de nós, invisíveis, sem marketing, com ou sem imagens retocadas, em defesa própria, em defesa das duas que habitam um mesmo corpo, imperfeito e – por isso – essencial.

Quem observa somente as derrotas delas cai na armadilha de crer que ambas caem e se espatifam. Quem amplia a lente e admira as vitórias e as lições do que se perde enxergará as cicatrizes das lambadas da truculência. Quem dá um passo atrás e as observa como uma só se sente na clareira após a mata fechada. O ar atropela, a luz balança, o equilíbrio floresce. A menina e a mulher estão vivas e prontas a nos ensinar.

Tenho o privilégio de conhecer muitas delas. Agora, penso em uma. A menina que vi nascer, a que dou boa noite antes de dormir e com quem divido as refeições, dores e alegrias em tempos de montanha russa. A mulher que vejo se tornar pelas escolhas, pelos erros de juventude, pelos acertos de uma maturidade que começa a se apossar dela sem pedir licença.

No resumo da ópera em andamento, livre de hipocrisia, uma grande notícia: ela será melhor do que eu. Talvez já seja! Viva!

Obs.: Texto publicado na AT Revista (A Tribuna), em março de 2021.

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