Sou feminista, sou machista (Crônicas de uma epidemia n.30)


Marcus Vinicius Batista

Sou um ser humano contraditório, como qualquer sujeito comum deveria admitir. Aprendi com uma professora em duas lições. A primeira era ter consciência de que somos seres em metamorfose. Sempre! A segunda dizia respeito à compreensão real de que só é possível mudar se reconhecermos nossos paradoxos.

Sou um feminista em construção. Em processo com arestas a aparar. Com avanços e retrocessos. Repleto de incertezas e equívocos de interpretação. Simplório e complexo nas conclusões, que podem ser derrubadas no dia seguinte, derramando minha arrogância pelos dedos de quem mal sabe o que está fazendo.

Ainda não posso bater no peito com orgulho e pedir aprovação alheia. Mas renovo profunda admiração pela minha filha Mari, pela minha esposa Beth, pelas minhas amigas Cidinha e Nara, pelos textos de Márcia Tiburi, entre tantas mulheres que me mostram como o feminismo é uma questão de todes (leitor, a palavra está escrita com correção. Permita-me provocá-lo a buscar porque se escreve assim). O feminismo é uma urgência que não desaparece da frente se ficarmos em silêncio.

Elas me ensinam com cuidado e afeto. Elas indicam caminhos, abrem as janelas para leituras, corrigem meus atos falhos, voltam ao básico, me educam pelo exemplo, me permitem valorizar a escuta. A fala é delas, o agradecimento é meu. O ganho é emocional.

A luta pertence ao incansável. Só assim haverá tratamento até o final da vida, espero e torço por isso. Não anseio por uma cura, milagre ou mantra que reparta meu mar em dois. Seria charlatanismo, estelionato social.

Sofro de uma doença crônica. São mais de 40 anos de machismo. Essa praga cultural recebe doses diárias de um comprimido que renova suas feridas. Não quero compaixão ou empatia. Não tenho o direito de autopiedade. Não existe menos ou mais machista. É ou é!

Tento controlar diariamente – e peco com frequência – meu machismo para que ele não se sinta feito bicho de estimação. Para que me tema. Como me livrar de células doentes que cercam e acuam por dentro e por fora? Como resistir às tentações do privilégio, do discurso sedutor do opressor e das facilidades do poder constituído pela minha simples existência?

Não há como deixar de ser machista. Você pode adormecer o monstro com caixas de analgésicos de respeito, tolerância e consciência cidadã, ciente de que – por qualquer motivo – as pílulas podem virar placebo e, assim, interromper a hibernação. O machismo gruda seus tentáculos nas nossas ações inconscientes e se vê reconhecido nos atos mínimos que julgamos de pouco valor. Pouco valor para quem? Machismo rasga como faca embebida em álcool e empapada de sal grosso. Machuca quando o praticamos, quando o negamos, quando silenciamos diante de tantas evidências.

Engana-se que o feminismo em mim combate o machismo que insiste em sobreviver aqui dentro. Eles vivem em andares diferentes da mesma casa, sem ligação entre os cômodos. Ambos se aturam porque não se veem; não entram em conflito, pois não são antônimos. É como se tomassem caminhos distintos numa única estrada. Não se medem como adversários porque não representam antagonismo.

Sou um ser humano contraditório, diante do espelho, todos os dias. Olhando para o outro refletido em mim, exalo dois desejos: me aproximar do feminismo e acreditar na ilusão de não ser machista.

Obs.: Texto publicado, originalmente, na AT Revista (Jornal A Tribuna), em 8 de novembro de 2020.


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