O silêncio (Crônicas de uma epidemia # 31)




Marcus Vinicius Batista

Sou viciado em silêncio. Tenho crises diárias de abstinência que os finais de semana são insuficientes para equilibrar. A primeira crise costuma acontecer por volta das dez e meia da noite e tem razão de existir. Acabei de dar, no mínimo, três horas de aula online. Duas vezes por semana, esse tempo dobra ou se estende um pouco mais.

Antes de começar a escrever esse texto, adotei o regime de exceção. Deitei-me na cama e, por meia hora, no escuro, desliguei. Não dormi. Coloquei a vida no silencioso. Janela e porta fechadas me permitiam somente pensar. Que a tagarelice fosse apenas interna, um paliativo para um mundo que insiste em falar, falar, falar...

A vida online nos retirou o direito ao silêncio. Por mais que peça, implore ou suplique, raros são os momentos em que uma aula ou uma reunião – por exemplo – nos presenteiam com a ausência de som. Chega a ser constrangedor como o tempo é distorcido. Um segundo de prazer sobre o nada, por favor.

Nas aulas via Internet, rezo por outras vozes. E me sinto exausto em ouvir por horas o som da minha própria voz. As aulas são a contradição do mundo lá fora. Ali, os tagarelas silenciam. Os faladores se acanham. Os curiosos se envergonham diante das telas e dos teclados.

Eu espero pela madrugada. Depois da uma da manhã, abro a porta da varandinha do quarto (moro num antigo prédio de três andares), uma espécie mirrada que resiste à moda da sua versão gourmet. Ali, na varanda onde só cabemos eu, a gata e uns vasos, encontro a injeção ideal de silêncio. O antídoto para o barulho. O grito silencioso contra o ruído de dia inteiro.

Sento-me na cadeira de praia e abro um livro. Ainda que consiga ler em público e essa atividade seja prazerosa até para afastar gente chata, ler é uma atividade silenciosa. A varanda me fornece a dose exata do silêncio entorpecente. Paro a leitura e coço a gata que dorme. Vejo os prédios e casas das redondezas, com raras luzes acesas. Meu celular está morto e me liberta da sua histeria coletiva e invasiva. Para os que tentam invadir minha privacidade durante a madrugada, a resposta virtual só chegará no dia seguinte.

No silêncio da varanda, desando a falar sem que nenhuma palavra saia da minha boca. Textos nascem, ideias brotam, reflexões se multiplicam, balanços são assinados para redefinir pequenos rumos pós-amanhecer.

A varanda reforça que não apenas devemos ouvir em doses homeopáticas cavalares, mas que precisamos produzir o falar em caráter artesanal. Assim como digitamos demais e pouco escrevemos, falamos sem controle e dizemos quase nada.

O silêncio deveria nos indicar o quanto se tornou essencial também enxergarmos com qualidade. A cada vez que me sento na varanda e descanso da leitura, procuro pelo detalhe no horizonte da minha rua. Só para mim, em segredo, sem alardear notícia, fuxicar com o vizinho ou fingir relevância em rede social.

O silêncio é o mestre que ilumina o caminho do que é importante, não do que se faz urgente. Se a insônia me visita, consigo me despedir do silêncio, por volta das quatro e meia. Quem se aproxima são os pássaros, que madrugam na árvore em frente ao prédio. A conversa deles, sempre sujeita a interpretações do meu silêncio, nunca é barulho. É a poesia óbvia que, como disse antes, não posso te contar. É a lei do silêncio.

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