Saudades dela! (Crônicas de uma epidemia # 29)




Marcus Vinicius Batista

Nós estávamos sentados no ponto de ônibus, na avenida da praia, ao lado do canal 5, em Santos. Eu e meus dois filhos esperávamos Beth, minha esposa, que retornava de São Paulo. O ônibus encostou por volta das 22h30, peguei a mochila dela, nos beijamos e retornamos a pé para casa.

Não olhei para trás. Assim como não cumprimentei na chegada, cometi a indelicadeza de não me despedir da praia. Teria perdido o respeito ou a rotina agitada balançou o valor das coisas essenciais?

Era metade de março e não poderia imaginar que passaria tanto tempo – como nunca na vida – sem ver a praia, sem pisar na faixa de areia, sem – pelo menos – molhar os pés no mar.

São seis meses e meio de quarentena. Não precisei de grades ou de lei municipal. Não fui mais ao calçadão tampouco cheguei perto da praia. Não deixo de me assustar com as invasões em dias ensolarados, feito crianças soltas em lojas de brinquedos na véspera de Natal.

Fui um rato de praia durante a adolescência. Passava horas nas imediações do Aquário Municipal durante os finais de semana e férias de dezembro e janeiro. Vôlei, futebol, taco, pegar jacaré, nadar até o farol – o trampolim daquela geração – eram itens de um cardápio que começava pela manhã, com paradas para comer em casa e voltar ao “expediente”, e terminava à noite, com os jogos no time dos zeladores da minha rua ou os “contras”, nossos clássicos particulares contra outras molecadas. Gol caixote de chinelos para as vacas magras. Gol de cano PVC quando se fazia a vaquinha.

A faculdade despertou os banhos noturnos. Uma turma que resolvia transgredir – como se fosse um crime capital –, mergulhando depois da aula e como prévia para o rodízio de pizza e a cervejinha de meio de semana.

A vida adulta e o trabalho como jornalista em São Paulo ameaçaram o relacionamento. Mas naquele momento, aos 20 e poucos anos, entendi a profundidade do amor. Todos os dias, quando retornava da Capital, dirigia pela orla da praia para sentir o cheiro da maresia. Ilusão ou não, era a dose diária de energia para prosseguir no amanhã. O eu te amo antes de dormir.
 

Fui morar mais longe dela depois dos 30 anos. Caminhar como exercício era a justificativa para encontrá-la de vez em quando. Meus filhos eram, muitas vezes, a outra “desculpa”. Testemunhar Mari (e depois o Vini) apresentando as novidades da natação nos mantinha na água como roupa de molho. O futebol de praia contra os alunos da universidade e o time do cunhado renovaram o casamento depois dos 40. 

Assim como minha mãe, desejo que minhas cinzas sejam depositadas na entrada da baía de Santos. Aliás, foi uma combinação entre nós durante uma conversa sobre a morte, cerca de três anos antes do falecimento de Dona Zuleica, em 2013. Nesta pandemia, preciso colocar na balança o peso de cada decisão. Abrir mão da praia significa me manter sem risco, ainda mais que eu, Beth e meu pai somos justamente do grupo ... de risco. Apesar da saudade, posso esperar. Imaginar a praia basta para entender seu papel em minha vida, inclusive na minha preservação e na renovação do amor por ela.

Obs.: Crônica publicada, originalmente, na AT Revista, do jornal A Tribuna (Santos/SP), em 27 de setembro de 2020.


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