Três meses, uma comunidade (Crônicas de uma epidemia # 24)

Foto: Marcelo Sório

Marcus Vinicius Batista

Sempre tive os dois pés atrás com grupos de Whatsapp. Permaneço em grupos de trabalho por obrigação redundante. Saí umas três vezes do grupo da família; na verdade, grupo de parentes. Não tenho afinidade com todos, sem cinismo, de forma que posso conversar com aqueles que me interessam nos canais privados.

Recebi, há três meses, o convite para participar de um grupo chamado Rufus, o Lenhador. É o nome da minha turma de Jornalismo, que remete a um personagem de um antigo desenho animado chamado Corrida Maluca. Completamos 25 anos de formatura este ano, o que por si só torna a iniciativa pertinente. Porém, minha primeira reação foi de desconfiança. Minha segunda reação também foi de dúvida. Na terceira, aceitei.

Tínhamos experiências anteriores, tanto eu quanto Beth, de grupos em rede social que se tornavam reprises de um tempo paralisado, de nostalgia sem o andamento do relógio biológico. Uma tentativa desesperada de editar as escolhas de vida. Juvenil, até.

Os conflitos nasciam, muitas vezes, da ilusão de que as pessoas permaneciam as mesmas e, portanto, desejos e rusgas seguiam firmes e fortes. O passado distorcido por cada memória lutava para exterminar as rugas e a flacidez do relacionamento que envelhecera.

O Rufus abriga hoje 59 pessoas. Apenas um colega declinou do convite, com alegações sintéticas descritas no parágrafo anterior. Em alguns instantes dos 90 dias de experiência, ele beirou o profético. Muitos dos membros trabalharam duro para que a mandinga virasse piada e o guru, charlatão. É óbvio que diferenças surgiriam entre tanta gente. Seria doentio se o grupo se transformasse em versões carcomidas de unicórnios, fadas e duendes.

Involuntariamente, o Rufus ultrapassou as expectativas ao se transformar num medicamento eficaz para a pandemia, sem precisar de propaganda estatal. É claro que as doses variam, a frequência da ingestão de pílulas também. Todos sobreviveram aos testes. Também sabemos que os efeitos são paliativos, dentro dos limites da linguagem do próprio Whatsapp. Mas isso não importa quando a dor cutuca de maneira crônica e requer reação imediata de quem estiver de plantão.

O Rufus se transformou num exemplo de comunidade. No início, foi necessária uma atualização. Muitos não se encontravam há 25 anos. Por onde andaram? O que fazem? O que comem? Como vivem?, questões feito chamada de programa jornalístico de TV aberta, às sextas de noite. O passo natural foram a saudade e as lembranças, vínculo único para a maioria de nós.

Aí veio a (re)construção. Amizades retomadas. Surpresas com cruzamentos de trajetórias de vida. Relações que não existiam na faculdade brotaram com a maturidade deste passado recente. Gostos redescobertos. Conexões profissionais e comerciais.

Houve um entendimento de que um grupo, 25 anos depois, teria que – simultaneamente – partir do zero e recuperar os arquivos do século passado para refazer a identidade. Ter a consciência de que somos metamorfose todo o tempo. Escapar da armadilha simbolizada pela expressão “do meu tempo”, tão melancólica quanto equivocada. O tempo é este. O que tem para hoje!

Comum não é igual. O senso de comunidade se fez no respeito pela dinâmica de cada um. Cada um com suas dificuldades, avanços, características, desejos, angústias, história de vida, valores. O senso de comunidade se fortaleceu na percepção de que o grupo possui administradores, e não donos.

O poder foi redesenhado, em um traçado diagonal bem próximo do horizontal. Próximo porque seria tão utópico quanto ingênuo ignorar que alguém, de vez em quando, precisa segurar a lanterna e iluminar o caminho. Alguém, repito, é quem está de plantão.

As discussões são livres, com discordâncias, e não rixas. Quando o cheiro de desavença pinta no horizonte, os canais privados alertam para que o ego engula a seco e faça a digestão do limite entre temas públicos e privados e necessidades subjetivas.

A comunidade tal qual um condomínio onde os moradores não podem se encontrar – como bem definiu um amigo – se vestiu em generosidade de ombros virtuais durante madrugadas que teimavam em esfriar as motivações para percorrer o dia seguinte. Vestiu-se também de afeto com a troca de canecas e presentes personalizados. Ornou-se de literatura afetiva, antes represada, hoje a machadadas de pelica, com a criação do blog Lenhadoras.

São os detalhes que fazem as lembranças. Que materializam o reconhecimento. Que aliviam as dores que os outros desconhecem. Que fazem quem somos agora, não há 25 anos.

A comunidade se cristalizou na crença silenciosa – assim mais verdadeira – de que o comum é o cultivo contínuo da fronteira entre a individualidade e as intersecções coletivas. E que esse casamento produz, de fato, um novo corpo, sem preocupações estéticas ou vaidades políticas, e sim como uma ética que, como conceito, só se sustenta pela convivência, pela vida prática, pelas ações e pelas avaliações sucessivas que levam os relacionamentos adiante.

Não me preocupo hoje – distante da desconfiança inicial – com o tempo de duração desta comunidade. Não me parece relevante cair na armadilha que tanto nos rodeia no mundo, a armadilha de queimar energias com previsões enquanto colocamos em segundo plano o tempo presente.

Se há uma vantagem no confinamento e no frenesi da vida virtual, ela é o presente como pergunta e resposta. E arrisco outra: o mundo encolheu fisicamente, mas nos deu a dádiva dos detalhes como fôlego.

Vida longa ao Rufus (até quando for possível).

P.S.: Nenhum dos colegas foi citado neste texto como reforço da ideia de coletividade. E o texto, redundante dizer, não reflete a opinião da comunidade, somente a impressão de quem escreve e agradece pela experiência.

Comentários

Marcelo Pavão de Freitas disse…
Perfeito! Você é um "fotógrafo" das palavras! Parabéns!!!