Cego e sem educação (Crônicas de uma epidemia # 26)



Marcus Vinicius Batista

O rapaz me olhou a primeira vez. Apenas olhei de volta, no reflexo. O rapaz me olhou novamente. Tive a sensação de que era comigo. Quando ele insistiu, eu o cumprimentei de imediato: “Beleza? Tudo bem?” A resposta dele veio no mesmo tom amistoso.

Beth, ao meu lado, notou algo diferente na saudação mútua e me perguntou: “Você conhece?”

— Não sei. Ele estava de máscara! E, sem óculos, não consegui enxergar o cara.

A pandemia pode ter me transformado, para muitos, em um sujeito sem educação. Outro dia, estava com minha filha a meia quadra de casa quando acenei para uma colega de profissão. Não a via há alguns anos, mas reconheci pelo jeito de andar. Confesso, mesmo assim, que só levantei os dois braços quase como vítima de assalto porque a moça fez sinal primeiro. Aposto que meu jeito efusivo foi um alerta inconsciente anti-grosseria.

Máscaras e óculos são como o casal de gatos aqui de casa. Vivem dentro do mesmo apartamento, cada qual num quarto, mas não consigo testemunhar uma convivência entre eles. Se saio de casa, a máscara ganha prioridade. Os óculos ficam no painel da sala. Eles só vencem quando prevalece o consumo de entorpecentes de massa, no Netflix. Preciso ler legendas sem esforço.

Tentei uma vez nesta quarentena levar a dupla para passear. Desisti ao final do primeiro lance de escada. A respiração vazava pela parte de cima da máscara. Os óculos embaçavam. A velhice agravada pelo sedentarismo fez força para colaborar no desequilíbrio. Quase cai como se Nazaré estivesse em espírito atrás de mim. Os óculos acabaram servindo de chapéu improvisado.

O pior é que detesto qualquer coisa na cabeça. Não uso boné, boina, tiara, chapéu de vaqueiro, chapeuzinho de festa de criança preso com elástico. Só usei gorro duas vezes. Na primeira, a sensação térmica era de menos cinco graus. As orelhas estavam petrificando. Na segunda, estava com congelamento em um dos dedos do pé e Beth descobriu, num texto médico, que o frio penetra no organismo pelos pés e pela cabeça. O gorro amenizaria a dor do congelamento, por mais ficção científica que pareça.

Saio o mínimo possível de casa nesta quarentena. A vida se resume a compras, no supermercado e na farmácia. Uma vez na semana, vejo meus filhos, quase sempre porque eles vêm aqui em casa. Desta forma, a máscara se torna o menor incômodo possível, não mais do que 15, 20 minutos de uso.

Já me peguei na fila do supermercado pensando como os caixas suportam jornadas de nove horas de máscara. Pensei o mesmo do segurança do mesmo mercado, que se transformou em amigo durante a pandemia. Senti-me idiota ao notar o óbvio: a máscara é o menor dos problemas deles, se é que pode ser visto como tal.

A máscara me transmite uma sensação de sufocamento. Por outro lado, me dá a impressão de que ela existe para propagandear o silêncio. Se encontro alguém, o próprio segurança – por exemplo -, me causa aflição sentir a máscara escorregar lentamente a cada frase que pronuncio. Os movimentos mecânicos de ajeitá-la me salvam de auto-constrangimento, porém informam que o tempo de calar a boca se aproxima.

Um amigo publicitário me deu dicas preciosas para que máscara e óculos convivam sem nebulosidade no relacionamento. Prometi experimentar. Mas especulo que, no fundo, o problema esteja na incompatibilidade entre dois objetos no meu rosto ao mesmo tempo.

Por causa disso, tomei uma decisão de uma semana para cá. Olhou para mim, seja porque me conhece, seja por ter torcicolo, seja porque estou vestido de forma inapropriada ou ridícula, o sujeito recebe um aceno e um Bom Dia de presente.

Melhor ser maluco ou cego do que mal educado. Sempre temos um vírus e um isolamento para terceirizar a culpa.

Comentários

Cidinha Santos disse…
Novos tempos e maneiras novas de identificar conhecidos e amigos. O jeito de andar e os olhos, quando a pessoa está próxima ajudam, mas podem enganar. Melhor fazer o que o autor recomenda, cumprimentar a todos e todas.
Unknown disse…
Muito bom, Marcus, ri muito. É isso mesmo, o distanciamento criando novas formas de aproximação E de nos garantirmos humanos. Parabéns para suas reflexões. Ricas e profundas.
Chrys Leite disse…
Gostei da dica! Acenar em 100% das situações! Mas quero a dica da boa convivência entre óculos e máscara. Está impossível pra mim conciliar as duas necessidades.