A cúmplice (Crônicas de uma epidemia # 22)


Crédito da foto: André Argolo
Marcus Vinicius Batista

Para Lila!

Fomos condenados pelo mesmo crime. Recebemos a mesma pena. Atravessamos quase dez anos juntos até que recebêssemos o benefício da prisão domiciliar, que poderia ser um calvário, mas enganou os bobos. Tornou-se uma benção para nós. Nos reaproximou de casa. De rir todos os dias. De cuidar um do outro.

A detenção nos permitiu ocupar os espaços que pareceriam estar atrás numa lista imaginária (e volúvel) de favoritos. Reforçou o que desconfiávamos: não importa onde, quando, saudáveis ou não, confinados ou livres, a convivência nos ensinou a valorizar o que acreditamos, os valores sobre os quais escrevemos, o modo de vida que (re)construímos.

A cada semana, esta conversa reaparece. Lembramos de amigos que seguem sozinhos. Lembramos de que como podemos estar juntos há quase três meses. Eu e Beth atravessamos o isolamento físico de braços dados. Na maior parte dos dias, apenas nós dois e os gatos.

Passei mais de dois meses sem ver meus filhos. Beth, sem ver os pais dela. Grupos de riscos, lá, aqui e ali. Ainda não vi meu pai desde que a quarentena começou. Amigos, então, a maioria deles manda notícias por videochamada. Um ou outro deixou encomendas no portão ou passou sem sair do carro para entregar alguma coisa.

Não imaginávamos como o isolamento nos amarraria um ao outro. Não se trata de um cordão umbilical, que nos une as 24 horas do dia. É o entrosamento que se dá pelo olhar. Dividimos os espaços para a realização das tarefas do dia e organização mínima de rotina. Quando um se aperta no trabalho, o outro faz a manutenção da casa.

Aprendemos a brigar e nos esquecermos das desavenças em minutos. A desavença vira abóbora antes de virar o dia. A quase totalidade delas é fruto de frustrações momentâneas dos excessos da vida online, uma luta diária para desviar da escravidão da produtividade, da falsa urgência de demandas alheias, das necessidades fúteis de quem adora vender a imagem de corredor de 100 metros rasos.

As conversas se mantiveram frequentes, os silêncios dos tempos de leitura também (uma lição que me esforço a seguir, contendo minha vontade de dividir um trecho de texto, com transgressão eventual e olhar paciente de retorno), os seriados e filmes para chorarmos, rirmos e debatermos quando julgamos necessário.

As três refeições diárias à mesa da cozinha ganharam ares de intervalo do trabalho, com algum salvo conduto mútuo para discussão de assuntos urgentes, quando não o desabafo de um ou de outro. A raiva, inclusive, é respeitada, porque costuma pedir por adesão, e não por complacência.

Cozinhar se transformou em hábito diário. É um caminho de devolução do que me ensinaste. Faço o básico, fruto de compras planejadas, geladeira organizada, cardápio pensado para os dias da semana. De vez em quando, arrisco um pouco mais, com mais acertos do que erros. Improvisos eventuais para provocar surpresas de ocasião.

Até a insônia virou extensão da companhia. Aquele que tem sono resiste, reorganiza rotina, aguenta mais um pouco de TV. Se não, dorme ao lado como uma companhia silenciosa. O ronco, se nos visitar, é declaração de amor na madrugada.

Descobrimos, ao longo dos anos, que gostamos da vida caseira. A vida lá fora já é suficiente. Como te disse tantas vezes, saio pensando na hora de voltar. Quando saímos de fato, o aeroporto ou as estradas nos acolhem. Como pregamos, é por isso que trabalhamos, assim reza nossa doutrina.

Descobrimos juntos que a quarentena não tem sido tão dolorosa assim. Há os momentos mais duros, geralmente provocados por terceiros e suas gritarias mimadas, mas um puxa o outro pela mão.

Descobrimos que temos o que precisamos, sem desejos estapafúrdios ou sonhos de consumo. Sentimos falta de gente, muitas vezes, mas jamais de coisas. A quarentena tem nos permitido viver com cada vez menos – não falo da pressão econômica -, mas do que realmente importa.

Após quase três meses confinados, a cumplicidade nos condena. E a sentença: permanecer no mesmo lugar. Com o apreço pelas pequenas experiências, que efetivamente grudam na memória. Com a lição de que não há receita, existem as escolhas juntos, dentro dos limites individuais.

É uma vida confinada em nós mesmos, com indultos em forma de saídas para o mundo, sabendo – creio eu – que voltar nos mantém saudáveis, nos mantém aqui. E lá!


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