Regina está morta! (Crônicas de uma epidemia # 19)


Marcus Vinicius Batista

Regina morreu. Ela não descansou. Não existe alívio, choro, velório e missa de sétimo dia. Regina apenas faleceu como esquecimento, aquele corpo que – com o tempo – se transforma em borrão fotográfico.

Regina não morreu de Covid-19. Os sintomas da causa mortis apareceram há alguns anos e se desenvolveram numa agonia silenciosa. Uma doença que se desenvolveu sem origem definida, sem que houvesse um diagnóstico transparente ou eficaz. Muitos desconfiavam, mas ninguém viu laudo. Nem ela.

Ela nunca se viu doente. Os delírios de uma febre que fincou bandeira nos 40 graus se diluíram em gotas, em eventuais placebos. O corpo nunca passou por uma intervenção cirúrgica, ou mesmo ingeriu pílulas mágicas da farmácia da esquina. Não houve tratamento, pois a fé descartava a síndrome enquanto via messias e milagres.

O primeiro sintoma surgiu há quase 20 anos. Eram tremores, fruto de um medo do desconhecido, do pânico de um novo caminho. Ela só conseguia dizer, sentindo-se acuada: “Tenho medo!”

Se foi ou não feliz na frase e depois se vangloriou com a mesquinharia e mediocridade alheias, pouco acrescenta ao histórico do paciente. Regina não escolheu o caminho da cura. Pelo contrário, mascarou a enfermidade com elixires de caixeiros viajantes com fórmulas de vida lá do século 19. Foi aquela ilusória melhora repentina de um mal que a levaria ladeira abaixo rumo ao coma (social).

Regina morreu por dentro. A partir de dentro. A beleza de ser a namorada ideal para muitos e o envelhecimento ativo funcionaram como injeções de botox moral num corpo ético que perdia cartilagens de decência, nervos de respeito pelo humano. Um corpo que se alimentava de toxinas de intolerância e preconceito.

As primeiras feridas começaram a aparecer (e a infeccionar) quando ela aceitou seu mais recente papel. Eu pensei em escrever o “último papel”, mas denotaria a morte da atriz. De fato, agora me limito à escolha de palavras.

Não há vacinas para vírus que a acometeu. A invisibilidade é tal que a mutação o fez negação. O vírus não é transmissível pelo ar. Ele pega pela contaminação de crenças, pelo sangramento de valores. Justificar tortura com outra tortura é feito o paciente que, entubado, sonha com alta porque o colega ao lado deixou a ala hospitalar. Que sortudo! Deixou a UTI para onde? Casa? Necrotério? Quarto em outro andar?

Não se justifica morte como natural quando induzida por um micro-organismo. A fantasia da má fé é sintoma seguido de alucinação de quem desenhou uma realidade na qual hospital é novo lar. A defesa contra um quadro clínico em visível declínio de caráter.

Regina morreu porque nunca quis ajuda médica. Nunca se viu doente. Por essas e outras, ela não está mais entre nós como estado de arte. E se recusou a levar as palavras da extrema unção consigo. Ninguém a confortou de maneira espiritual. Nem foi preciso pedir cuidados paliativos.

Não houve especulação sobre equipe multidisciplinar. Nem segunda opinião. Só aquela negação clínica calcada na arrogância que despreza o médico ou o curandeiro. Prevaleceu o auto(des)cuidado, com promessas e fórmulas de vida saudável. Nesta hora, Regina já estava desenganada.

Regina foi uma excelente atriz. Encarnou personagens com tal profundidade que muitos acreditaram que a pessoa era a viúva apaixonada pelo santo, a vendedora de sanduíche na praia que hoje contradiz a atriz espelho, entre outras personas. Quando se expôs sem maquiagem ou figurino cênicos agora há pouco, vimos que a doença a corroía, mas a confusão já estava em nós. Malu Mulher nunca foi ficção. Era mentira.

Complacentes com esta miragem que dança entre dois mundos, atiramos no coelho errado. Ficamos com a personagem e nos surpreendemos com a extensão de limites da vilania. Com os olhos embaralhados, não notamos que Regina tinha morrido há bastante tempo. Ou melhor: os personagens nunca nos deixaram conviver com quem estava viva.

Morta-viva, Regina continua a atuar; desta vez, como caricatura de si mesma, numa dramaturgia de principiante, entretendo uma plateia composta de cadáveres infectados por vírus e outros organismos.

Comentários

Junior Landim disse…
Arte e política só funcionam se mantiverem distância de 2 mil km uma da outra....A Arte para refletir e a Política para entristecer.
Unknown disse…
Perfeito. Contundente. Sem palavras. Você já disse todas.