Mestres da quarentena (Crônicas de uma epidemia # 18)

Ele, o Felino

Marcus Vinicius Batista

Eles já mandavam mesmo. Nós pagamos as contas para que eles nos deixem morar junto. Nós os acolhemos para que eles nos deixem fazer parte da turma. Um casal impiedoso quando está carente. Implacável quando está com fome. Escandaloso quando quer ir ao banheiro.

Eles são Romeu e Julieta que se detestam. Bonnie e Clyde que se unem no golpe, mas não no amor. São a Dama e o Vagabundo entrelaçados pelo ócio. Ele chegou primeiro, um bebê há quase sete anos, que se escondia embaixo do sofá, apavorado pelas imitações de dinossauro do meu filho Vini, então com quatro anos. Seres da mesma espécie apenas querendo brincar, sem demarcação de território.

Ela chegou na calada da noite, de mansinho, escaldada não pela água fria, mas pela violência das ruas e, muitas vezes, do fogo amigo de vizinhos nossos, da nossa espécie hipócrita. Faminta e sedenta, ela veio viver no spa, onde passava quatro, cinco horas ao dia, antes de se tornar sócia remida do clube. (leia a história dela aqui

Ela, a Magriça

Eles são estrategistas. A arte da guerra é livro de cabeceira. O Príncipe, de Maquiavel, faz as vezes de Bíblia tamanha a capacidade de dominar. Dividem, ocupam, conquistam. Dormem, comem, preenchem a caixa de areia. 

Os dois só reforçaram o que miavam nas madrugadas. Eles sabem como viver uma quarentena. O paraíso é o confinamento. O isolamento representa independência. Não há angústia. Só indiferença. Não há fanfarronice ou gritos infantis de Brasília que os abalem.

Eles se especializaram em ficar em casa. No máximo, uma visita no tapete da porta da vizinha. Pela manhã, um pulo na janela para verificar o estoque de pombos, um sonho gastronômico de consumo talvez. Nunca te vi, sempre te odiei.

A quarentena não muda o déficit de atenção. Felino e Magriça são tão egocêntricos quanto autônomos. Eles determinam quando subir ao centro do palco e o que fazer para serem entretidos. Jamais vão distrair alguém que não para distrair a si próprios. Coceiras, invasão de aulas, cerca viva entre o teclado e o monitor, testemunhas silenciosas de conversas de trabalho, coadjuvantes em videochamadas com meus filhos e amigos. É muito mais fácil exercitar seu marketing pessoal na mídia alheia.

As ordens, os recados vêm por repetição. Se soubessem, desenhariam para os seres inferiores/provedores. Se ela se estica no fogão, não é preguiça, é fome. Se ele mia quase aos berros na cozinha, é o cheiro de salsicha ou linguiça ou presunto ou atum, o que for necessário para degustar, encher o bucho com meia dúzia de nacos e desaparecer para dormir.

Ambos formam, ao contrário de nós, os humanos, um casal que mora tanto tempo junto que esqueceu do divórcio. Aliás, se divorciou sem nunca ter se casado. É macho alfa versus fêmea alfa. Ele, com pose de diva, bate na bunda alheia. Ela, com andar de gangue de rua, dá na cara. Motivos não existem. O duelo tem hora marcada, como o velho faroeste: nove da manhã, com reprise à uma da madrugada. A emboscada dura segundos. Quem perdeu, que procure o horário alternativo na arena do momento.

O cessar-fogo respeita dois critérios, os mais importantes para a quarentena (nossa ou deles?): comer e dormir. No sono, separação de corpos. Ou invisibilidade. 

O Muro de Berlim

Quando dormem no mesmo sofá, uma almofada – apelidada de Muro de Berlim – é necessária para manter a frieza da guerra. Até toleram que um durma no espaço do outro, desde que haja um Plano B, ainda que a pernoite aconteça na cama dos humanos visitantes.

Na comida, juntam a fome com a vontade de comer, na saúde e na doença. E, como não existe honra entre ladrões, ignoram o ditado dos cem anos sem perdão. Usando outra máxima, quem foi até ali ...perdeu o PF.

Felino e Magriça são os mestres nesta quarentena. Eles ensinam o quanto podemos ser adaptáveis, o quanto devemos valorizar o básico, o quanto devemos preservar o silêncio. E, de vez em quando, com hora marcada, o quanto se deve extravasar sem que seja nada pessoal.

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