A religião dos lenhadores (Crônicas de uma epidemia # 21)

O kit da fé

Marcus Vinicius Batista

Minha primeira (segunda) comunhão aconteceu neste período de isolamento físico. E eu soube que cumpriria este sacramento cinco minutos antes, quando o interfone tocou. Eu e Beth nos entreolhamos em um diálogo mudo: “Você está esperando alguém?”

Eu me levantei para atender e ela sorriu. “Alguma surpresa?”, perguntei. “Não sei”, na confissão de um coroinha que bebeu o gole do vinho escondido antes da missa.

Desci de máscara, feito herege que desconfia de que a Inquisição chegara aos portões. Salvo os bancos, quem desejaria me queimar vivo? O mensageiro me esperava com apreensão, tinha outros relicários para distribuir naquela noite. Subi com o artefato como quem sustenta o cálice sagrado em mãos trêmulas. Que fosse o do Monty Pyton, com seu valor de clássico.

Chamei Beth na cozinha e abrimos a encomenda. Maldição de quantos anos? Pandora se abriria para nos aterrorizar? Era o cálice da comunhão, com o símbolo da divindade que nos acompanhou por anos e terminou esquecida na memória escura e alimentada pela vida mundana.

O cálice vinha com a marca dele, Rufus, o lenhador. Isso, o personagem do desenho animado Corrida Maluca, que deu nome à turma de Jornalismo, da qual fiz parte entre os anos de 1992 e 1995. Uma caneca que veio acompanhada de um bilhete e uma oração.

A bebida para a comunhão veio junto, para conter qualquer crise existencial. Três tipos de cafés diferentes. Eu e Beth, que participou como missionária convidada, escolhemos o café creme bruleé, um dos sabores preferidos dela.

Ao gosto de café bento e chocolate em barra, senti o chamado para dar meu testemunho, algo que levou alguns dias para que pudesse interpretar as escrituras, reescritas todos os dias na Internet. A palavra talhada nesta crônica.

Minha ressurreição de fé aconteceu em 17 de abril. Pelo whatsapp, dois diáconos, Marcelo e Adriana, me convidaram para voltar às origens. Queriam que eu aceitasse ser um membro da “Rufus, o lenhador”, depois de duas décadas e meia. Meus pecados foram perdoados de imediato. Meu passado seria ignorado, exceto pelo livre arbítrio movido à saudade.

A palavra não seguiria uma série de mandamentos. Aliás, só um estava escrito na tábua-tela: retomar a amizade. Éramos anciões e deveríamos ter alguma sabedoria para enterrar o que ficou nas ruínas do século passado, nos escombros do prédio da faculdade, demolido pelas varandas e churrasqueiras gourmet.

Os dois, em poucas horas, se uniram a muitos outros, uns desconfiados, outros jurando que a intolerância gritaria diante da palavra renovada, alguns contentes por encontrar os seus irmãos e irmãs de velhas novenas.

A primeira versão da religião dos lenhadores nasceu dentro do catolicismo. Não era dissidência ou neo algum caminho distinto, ainda que protestássemos de vez em quando. Éramos cerca de 70 seminaristas e noviças, de idades, origens e classes sociais diferentes, todos de joelhos para os sonhos do Jornalismo.

Frequentávamos a igreja da Faculdade de Comunicação de Santos de segunda a sábado. A bebida e o “incenso” eram símbolos dos rituais xamânicos nas redondezas do templo de formação. Sincretismo, acima de tudo e de todos. Muitos abdicaram dos votos de castidade, na criação da própria doutrina. Nada a ser exorcizado em se tratando de jovens, de corpo e/ou de alma.

Alguns rezavam todos os dias. Outros estabeleciam comunicação direta com seu santo professoral preferido de vez em quando. Aliás, um ou outro santo – as opiniões hoje divergem – era de pau oco.

Ao final de quatro anos, 55 pessoas concluíram o seminário numa santa ceia de muitos pecados capitais no Clube Atlético Santista, em março de 1996. Todos foram ordenados, os caminhos da fé se multiplicaram em bifurcações, em novas crenças, em descrenças com a religião original, em crises de fé, todos destinados à tentações do mundo pagão.

A religião dos lenhadores produz milhares de versículos todos os dias, em caráter ecumênico. As parábolas da vida religiosa não são decididas em conclave à espera de fumaça. Não mais! Elas brotam feito pequenos milagres e podem se travestir de relatos edificantes ou de momentos nos quais o caramunhão tentou de chifre e rabo em riste. Ou de nome PR, para não se repetir o nome completo, a la loira do banheiro.

É impossível se atualizar pela palavra rufiana. Fiéis foram escolhidos na sacristia – os critérios foram o voluntariado, o amor pelos irmãos – para a produção de um resumo litúrgico, capaz de manter as ovelhas serenas.

De vez em quando, nasce aquela impaciência, legítima pelo volume de páginas do livro sagrado em construção contínua, consequência do ritmo de vida acelerado do homem falível, que se parece com o menino que conta os números no folheto de papel de uma missa que nunca termina.

Ao contrário das grandes religiões, a igreja virtual dos lenhadores é organizada por mulheres. Finalmente, uma rebelião no céu e a voz rouca feminina vinda das nuvens, no clichê do filme que ainda será feito via propaganda de Deus. A palavra em essência é feminina. O tom de igualdade se dá pela liturgia das cerimônias, 24 horas diárias em tempos pós-modernos. E, desta forma, o milagre da multiplicação de textos se fez corpo e sangue no blog Lenhadoras.

A religião dos lenhadores surgiu globalizada. Não houve uma expansão gradual pelo planeta, como as principais religiões da História. Ou a construção de templos pelos continentes, como ícones de força e poder. Ou pela busca por tostões de ouro de cotações diferentes.

Os fiéis carregam os templos em seus bolsos, bolsas, mochilas, sacolas, necessaires ou como extensões dos braços, como previu um dia Marshall Mc Luhan, nas pregações de de (são) João Batista da Teoria da Comunicação. E levam a palavra pelo mundo online. Há gente na Ásia, nos Estados Unidos, com passagem pela Europa, países da América do Sul, diversos Estados brasileiros, São Paulo capital, interior, litoral norte e Baixada Santista. Os lenhadores são quase onipresentes, sem complexo de Super-Homem.

A religião não cultiva imagens, exceto uma: a do Rufus. A igreja fica no celular de cada um. A porta é de cor verde, ostenta um símbolo arredondado em formato de balão de HQ com um telefone no meio. Não há querubins ou um sábio de barba branca a recepcionar os novos moradores. São somente dois traços que ficam azuis quando o irmão ergue as mãos e dá glória a Deus.

O resgate das ovelhas é feito por convite, sem perseguições ou fanatismo. Hoje, são 58 irmãos, alguns que vieram de outras congregações. Quatro ainda não foram localizados. Apenas um deles se recusou a frequentar a nova versão da religião. Preferiu pregar sozinho em outro deserto, com o temor de que uma das pragas se abatesse sobre ele. Ou que fôssemos todos consumidos pelo pecado da ira. Por enquanto, a gula domina.

A religião dos lenhadores salvou muitos de nós do sofrimento emocional (e talvez espiritual) em tempos de pandemia. As manifestações de amor, de humor e de dor serviram como hóstias que iluminam as trevas particulares, que calam os demônios de cada um dos 58 homens e mulheres que resolveram apostar numa nova conversão depois de 25 anos.

Que a amizade esteja convosco. Amém!


Comentários

Rozemeri França disse…
Amei!🙏🏼❤️