A menina que mandava cartas (Crônicas de uma epidemia # 20)



Marcus Vinicius Batista

Para Erika

Quando ela encerrou a carta, não se sentia bem. Sentia-se derrotada, mesmo sem ter culpa pelo resultado. Perdera por causa de alguém que parecia infalível. Alguém que tinha o nome Inteligência e não deveria ter comportamentos estúpidos. Isso se houvesse naturalidade no trato com um ser humano. Se houvesse...humanidade no sistema.

Erika se sentia falível por causa de alguém que prometia perfeição, organização e planejamento, um gigante nacional de nome em inglês. Um fraude contra ela, logo ela que adora listas, que se organiza diariamente, que é doutora honoris causa em planejamento.

A carta era diferente das outras. Era o oposto das que recebera ontem e que, como intermediária em dia de festa, bastaria repassar adiante, receber o agradecimento e testemunhar a felicidade alheia como reprodução da própria. Tudo dentro do protocolo do Dia das Mães. Bilhetes na extensão, cartas na profundidade.

A palavra escrita, ainda textos de amor acompanhados de comida italiana, é tempero numa cantina onde a Mamma reina como ícone cultural em cada ingrediente. Erika é rata de livraria, compra livros (e os lê) como kit de sobrevivência na selva, transformou um pedaço privilegiado do restaurante em bancada de livros e um salão – uma vez ao mês – em templo para escritores, editores, leitores. Ela sabe, como consumidora e como comerciante, o quanto é vital reforçar os vínculos durante o isolamento físico.

A carta de hoje era um pedido de desculpas. Ela está acostumada a trocar correspondências com gente do mundo inteiro, muitos que sequer a conheciam. Era um ritual de vida analógica, de se sentar à mesa, com papel e caneta. Papel escolhido a dedo na loja. Caneta e caligrafia como pares de uma dança de salão, num bailado digno de vencer concurso.

Hoje, a carta deveria ser curta, endereçada a um rosto talvez não identificado, que poderia estar ali na esquina, ou no mesmo bairro, talvez escondido num perfil de rede social. Uma carta direta, honesta, franca como um gesto de reconciliação. Nela, não haveria espaço para literatura, apesar da densidade psicológica que envolvia a autora.

Nas mãos de Erika, o teclado gritava pela jornalista, direto ao ponto, uma notícia com verdade factual suficiente para que reagisse aos rumores, à maledicência, à truculência de tempos nos quais muitos consumidores se assumiram como reizinhos no parque. Não era com eles que Erika pretendia falar, e sim com os amigos, colegas e clientes que não conseguiram entender aquele 10 de maio. Ontem, o caos, nas palavras escritas pela autora que chora enquanto escreve.

Se o leitor de mínimo bom senso pudesse ver a carta em construção, é possível que não a lesse, não somente pela história de integridade, mas também pelo peito aberto de quem se viu sem saída 24 horas antes.

A carta não poderia ter frivolidades, histórias de vida, troca de sentimentos, diálogos culturais ou explicações sobre presentes como gestos de carinho, de amizade em construção. A carta de hoje era para reconstruir, refazer-se das cinzas de um dia ruim, agravado pela data em que almoçar é um cerimonial único no ano, de muitas famílias nas quais a dona da festa teria folga da cozinha. A comida seria transgressão e reforço para uma época de distância, de novas formas de dizer eu te amo.

A carta de hoje jamais seria enviada pelo correio tradicional. Não recebeu selo, sorriso de carteiro, feições de surpresa de quem a receberia 15, 20 dias depois. A carta seria espalhada pela Internet, sem destinatário definido, mas para todos que pudessem se sensibilizar com o incidente provocado contra o restaurante dela, do pai e do marido, assim como muitos outros estabelecimentos que confiaram e ficaram calados muitas vezes diante de quem, por arrogância, se deleita artificialmente na própria inteligência. Tão espertos quanto desprezam a sensibilidade das relações humanas. Os reis dos algoritmos perderam a fala que nunca possuíram.

Erika chorou pela dor de nadar na contramão. Não se faz silêncio quando se erra. Um dia ruim não desaparece no clique do botão Delete. Na fluidez do presente, a carta simboliza a necessidade de se apoiar no passado. Na terceirização da vida, a carta é a construção da identidade com o outro, da presença em cena, sem empurrar responsabilidades ou contratar culpas.

Erika continuará a escrever cartas. Assim, ela se faz verdadeira, que sofre, que se machuca em excesso porque numa cantina de origem familiar (não confunda com doméstica) comida italiana em dia comemorativo é feito comunhão em missa de domingo.

A carta é aberta no nome, assinada por uma mulher que engana os que só veem a menina. A carta, da primeira vez que li, me soou escancarada, crivo de quem responde com maturidade. E vai às lágrimas porque se importa.

Erika, seu pai e Marcelo ficaram apavorados, mas nunca tiveram medo de trabalho ou de dizer “Me desculpe!”, mesmo que fosse por um crime que não cometeram. E Erika, diga-se, nunca publicou nome de agressor, que segue impune por tentativa de assassinato de reputação.

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P.S.: Este texto é um agradecimento a todos os anos de bom atendimento, de boa conversa, de amizade renovada a cada refeição, a cada encontro. Erika Rodriguez e Marcelo Saraiva, nosso muito obrigado! Marcus e Beth.

P.S.1: A carta aberta está disponível nas páginas da Cantina di Lucca, no Facebook e no Instagram. Vale o esforço de dar um pulo lá.


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