Só a bailarina que não tem (Crônicas de uma epidemia # 15)



Marcus Vinicius Batista

Às vezes, é preciso isolamento físico para reaproximar pessoas. De duas semanas para cá, meus encontros com a Cláudia se tornaram mais frequentes. Palavras por rede social quase todo dia. E o auge do diálogo às quartas-feiras, às 17 horas em ponto, quando ela e Thays Ayres se reúnem e nos chamam no Instagram para o Palavrório, lugar virtual onde elas leem textos de vários autores – Thays, da maneira tradicional; Cláudia, por libras.

Intervalo: o Palavrório e a Thays vão aparecer em outra história, até porque merecem capítulos à parte. Hoje, é o dia da Cláudia Alonso.

Cláudia é arteira. Ouvi falar dela pela primeira vez no final dos anos 1980, quando conheci o Orgone, um grupo de dança contemporânea. Ela, psicóloga-novata e bailarina com anos de sapatilhas, começava a casar as duas áreas. E brincar consigo mesma. Tirar seus velhos paradigmas do palco e saltar para o próximo ato de seu espetáculo. Seu espetáculo, de fato. É impossível para ela separar arte e vida. Não há elucubrações sobre quem imita quem. Vida e arte, na filosofia claudiana, se entrelaçam e pronto.

Nesta fase de isolamento, Cláudia só faz arte. Apronta feito criança-gigante inquieta, que transformou a Internet no seu parque lúdico. Ela testa todos os brinquedos porque precisa se comunicar. É tão visceral quanto seus trejeitos de atriz nas mínimas ou nas escandalosas e divertidas manifestações do que sente. Ela é atriz. É tão automático como um giro que sucede o anterior (o Fouetté). Espero ter acertado no carinho e na liberdade de uso do francês, tão primitivo como meu conhecimento de balé.

Inventora do próprio palco, Cláudia pulsa nos poros das redes sociais antes do vírus. Ela vacina com seus vídeos, medica com seus testemunhos, alivia o sofrimento alheio com a consciência de que a terapia é vital nas horas de crise.

Cláudia é arte-educadora. Ela ensina e aprende. Ensina e aprende não apenas os que já sabem (ou julgam saber). Ela dialoga com quem talvez nunca tivesse a chance de flertar com o conhecimento em outros festivais. Cláudia, Renato, Thays, Mariana e muitos outros (a lista é quase tão grande quanto este texto) revivem o Tam Tam a cada aula e sobrevivem do fazer educação com arte (a recíproca é verdadeira) antes e depois de cada encontro. Na quarentena, a psicóloga-bailarina e a bailarina-psicóloga (mal sabemos quem chegou primeiro) dão aulas virtuais diárias de dança. Aulas para quem performance é prática, jamais resultado de bilheteria ou escravidão por audiência.

Cláudia é artesã. Ela pode ser chata como os perfeccionistas. Ela pode ser livre como os rebeldes com causa. Ambos são Cláudia. O que aparece nas duas é o amor pelos detalhes, a paixão pelas entrelinhas, por cada palavra, gesto ou imagem da criação. Seu afeto nunca se agarra à forma, aos fragmentos, aos enfeites da aparência.

O artesanato está no zelo, no cuidado com cada passo. Cada etapa é tão importante como parte quanto como todo. A artesã sabe, a cada ensaio, que o pilar sem a base cai, que a base sem o pilar morre incompleta.

Cláudia é política cultural. Ela fez sua pós-graduação quando pisou no mundo dos deslocados, dos marginalizados, dos invisíveis. Cultura e política são umbilicais, perspectiva que brotará para onde virarmos a cabeça no palco em busca dela. Política sem partido e com crítica social está no conteúdo do que encena ou interpreta, na relação com os colegas de teatro, no trato com o público, no acolhimento dos alunos, nos embates com os burocratas. O animal político é artista.

Cláudia é louca pela arte. E da arte faz suas loucuras. E diante da insanidade vista pelos convencionais, extravasa emoção. Com cinco minutos de convivência, já se percebe que, para ela, não existe arte sem sentimentos, frases incompletas ou cena sem propósito. Emocionar é elemento de exposição e provocação.

Ela teve que se entrincheirar, no final da década de 1980, na pior “casa de loucos” de Santos, incluindo as não oficiais: a Casa de Saúde Anchieta. Entre quem foi obrigado a crer que não tinha nome ou história, Cláudia viu o quanto loucura como estigma pode esconder atrás das cortinas, dos muros e das grades um olhar injusto, desigual, opressor, linear e binário.

Com a loucura institucional e depois com a loucura dos cidadãos saudáveis em suas narcísicas teorias do bem, ela cresceu como artista, como educadora, como gente. E vive cercada de gente, de todas as gentes, e luta com eles contra aquela gente que, por ser estúpida e arrogante, não os considera gente.

Esta mulher múltipla, incansável, frágil quando não quer, forte quando precisa segue na batalha contra o isolamento, apesar de ferida, como todos nós. A cada dia, se expõe como os artistas, fiel às pessoas e às ideias.

Cláudia Alonso não tem alma de artista. É muito pouco e deveras simplório. Cláudia é uma artista toda ela.

Comentários

André Rittes disse…
Justa, bela e merecida homenagem. Claudia é daquelas pessoas que fazem do mundo um lugar melhor.
Chrys Leite disse…
Que linda essa homenagem!!! Cláudia merece! E muito! E você a retratou muito bem!
Unknown disse…
Muito bela crônica.
ELISABETE PILLILINI disse…
SÓ GRATIDÃO É POUCO ,PURO AMOR ,POESIA EMOÇÃO!
BEIJOS
Thays disse…
Que texto lindo Marcão! Quanta verdade, quanta exatidão! Como sempre, leitura boa pakas !!!!Aplausos.
Anônimo disse…
Esperei a cada momento do texto por um adjetivo específico: incansável. São tantas Cláudias e tantas ações que a gente perde o fôlego com ela. E logo depois recupera. Também com ela.
Tam Tam não é para qualquer um, mas é para todos!
Paula Quagliato disse…
O comentário foi meu!
Paula Quagliato disse…
Esperei a cada momento do texto por um adjetivo específico: incansável. São tantas Cláudias e tantas ações que a gente perde o fôlego com ela. E logo depois recupera. Também com ela.
Tam Tam não é para qualquer um, mas é para todos!