Os jardins de Sucupira (Crônicas de uma epidemia # 8)

Odorico Paraguaçu e as irmãs Cajazeiras

Marcus Vinicius Batista 

"Vamos botar de lado os entretanto e partir para os finalmente." (Odorico Paraguaçu)

OU 

"É com alma lavada e enxaguada que lhe recebo nesta humilde cidade." (O Coronel)
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O Coronel Odorico Paraguaçu se sentiria em casa. O Bem-Amado, de Dias Gomes, poderia caminhar com seu terno branco, equilibrar seu chapéu panamá, arrastar sua malemolência com a bengala que ganhou de um gringo e cantarolar em sua fala mansa pelos jardins sem ser incomodado. Pelo contrário, ele teria seu ego inflado por uma fila de bajuladores, de seguidores que fazem exatamente o que se espera deles: caminhar atrás, bater palmas, defender o líder com truculência verbal, todos sem máscaras, mas com seus tapa olhos equinos e seus cabrestos virtuais.

Odorico é mais do que um reles capitão. Ele é um símbolo no imaginário. Ele é coronel, não de patente, mas de direito, da vida política individualista. Coronel com status do poder adquirido, respeitado por temor, admirado como referência (a)moral.

O Coronel – a letra maiúscula o coloca como dogmático e divino – veria muitas crianças em seus brinquedos, agarradas às pernas dos pais que as transformaram em criaturas pode-tudo, seja por desejos inconfessáveis do adulto infantilizado, seja por herança da criança com procuração de adulto. Pais, tios, avós, que reproduzem o que seus gurus indicam, vendem, pregam nas redes sociais. Odorico não precisa de Facebook, Instagram. Seu séquito de homens de certezas absolutas divulga sua doutrina, seu modo de viver, seu estilo de não olhar para quem não tem o que oferecer em troca.

Engana-se se alguém acredita que Odorico usaria luvas ou máscaras. Ele não pega neste povo para não pegar nada. Nem o dinheiro que o povo das caminhadas proibidas finge ter. Sucupira está falida, meu amigo, diria o Coronel para Dirceu Borboleta (e mais ninguém). Vai que as irmãs Cajazeiras escutaram o dedo de prosa e apontem o dedo para o mundo enquanto exercitam a língua.

As Cajazeiras são leais ao Coronel, mas – acima de tudo – a elas mesmas. As irmãs, amigas, vizinhas, coleguinhas (qualquer nome serve) andam na orla da praia todos os dias. Ali é o maior poço de notícias privadas – nunca fofocas – que podem virar públicas no círculo do condomínio gourmet, na mesa do rodízio da moda. Na província de Sucupira, ninguém fofoca, só comentam. Os de fora nunca entendem!

Odorico andaria, certamente, cercado de seguranças, pois o cheiro do cidadão de bem fica incubado como vírus. O cheiro e a mentalidade. É histeria dos americanos, coisa de italiano, fraqueza de espanhol, ingenuidade de alemão, conspiração dos chineses, qualquer um que possa materializar o espírito de que a culpa é sempre do outro.

Aqui é a terra da caridade, nós nos sensibilizamos com as terras distantes. É a empatia, claro. A palavra como tendência. Os daqui seriam só os meus, que se bronzeiam comigo, que tem o mesmo celular, fazem compras no mesmo empório, contratam as mesmas funcionárias (ou secretárias) lá de casa. Quem mora em outras áreas da província não existem. O outro mundo começa além da linha da máquina, hoje VLT. Se não se conhece, não existe.

Os jardins de Sucupira são os maiores do mundo. Está lá no livro dos recordes. Isso é motivo de orgulho. Nunca se fez nada com isso, mas Odorico explica: é para mostrar, meu filho! O jardim não é só exibido, ele exibia até pouco tempo os transgressores de quarentena, gente de vanguarda.

Um dia, vocês entenderão que os sucupiranos ou sucupirenses andavam à frente de seu tempo. Gente que está acima do cientistas, sujeitos que só atrapalham com essa mania de falar com conhecimento. Cientistas não produzem memes, não espalham vídeos que não se precisa saber de onde saíram. Verdade de opinião não se questiona. A opinião de verdade, por sua vez, não vale.

Só quem nasceu em Sucupira – aceita-se quem adotou a cidade, tá - desfila, ostenta, parece rebelde e volta correndo – como se fosse uma extensão do exercício - para os vidros fechados, escuros, dos metais blindados sobre rodas (ou carro “popular” financiado em seis anos).

O Coronel, se não estivesse entre nós apenas como mito, distribuiria sorrisos, acenos, V de Vitória. Até joinha! Ele repetiria palavras de ordem como “Juntos somos fortes”, “Estamos juntos”. Sintam-se abraçados. Sintam-se!

O velho político é gato escaldado, não vai se comprometer diante da dúvida. Ele está lá, perto do povo gourmet, mas é grupo de risco. Vai que os europeus estão certos! Sabe como é...o que vem de fora costuma ser melhor. Até o vírus.

Odorico deixou herdeiros. Muitas cópias transitam por estas praias, mas só puderam esbravejar. Como fecharam a praia? Não conheço ninguém que morreu. No meu condomínio, ninguém ficou doente. Na minha academia futurista, ninguém está internado. Ela está fechada, mas meu grupo de whatsapp garante que há exageros. Não sei por que o grupo não se chama ainda “Essa é minha opinião!”

O Coronel estaria esbravejando ao saber que até o calçadão de Sucupira foi fechado para seus correligionários. Como ficará a província? Como seremos fitness? Isso vai interferir na minha qualidade de vida, na minha alimentação saudável, no meu corpo falso padrão...no meu...no meu...no meu...

Os filhos de Odorico não sabem para onde ir. São órfãos que rodam como baratas tontas sem a praia, sem o shopping, sem a academia-franquia, sem o restaurante de PF que custa três dígitos e tem nome gringo, sem a balada-ostentação. Orfãos geográficos, presos em suas próprias casas, obrigados a conviver com os companheiros matrimoniais de república, com os parentes de albergue de luxo. Como falar comigo mesmo?

Os políticos só inventam para beneficiar quem não quer trabalhar. Os filhos do Coronel também não estavam trabalhando. Estavam sim, o corpo, ao caminhar. Pôxa, eles merecem férias. Geram renda.

Os políticos inventaram o vírus. Inventaram a epidemia. Inventaram um número maior de mortes. Inventaram os grupos de risco. Não conheço ninguém, Coronel. Agora, inventaram de fechar a orla da praia, o meu quintal público para meus interesses privados.

Já não se fazem mais Sucupiras com antigamente, desde o tempo dele, o Bem-Amado. Pena que Dias Gomes morreu! Mas este, hum, este era comunista, marronzista e badernento, como diria o Coronel.

Comentários

Paula Quagliato disse…
Pior de tudo é poder enxergar-se exatamente plantado nesse canteiro de obra inacabado...