Mistérios da Meia Noite (Crônicas de uma epidemia # 14)



Marcus Vinicius Batista

Em homenagem ao Zé Ramalho

A menina fez ontem cara de desamparada, de quem se entregou ao professor sem saber no que poderia se transformar. Deu a pior das virgindades, a mais falsa e valorizada das imagens: a moral. Ela jurava ter se apaixonado há quase dois anos, quando se conheceram e caminharam juntos rumo ao povoado, repleto de gente que não sabe se fica nem sabe se foi.

Apostando no povo marcado e feliz, consciente de que poderia se construir como o novo Noé, pilotando a arca-dirigível, a menina agora se sente desgarrada. Um dia, de fato, ela se agarrou ao poder, ao prestígio, contaminada pelo vírus da mosca azul, que corrói a todos que se aventuram e sonham vestir a fantasia do menino Roque, cobrindo-se com as glórias e as medalhas mesquinhas do Zé.

A menina, hoje chorosa de mágoas com quem teria abusado dela antes e depois da meia noite, fingiu estar perto de Deus para convencer os beatos de que era hóspede do palácio do povoado. Vendeu a alma ao Capeta, mas não pôde se esconder do Salú, sobrevivente como espírito em cada um daqueles que enxergavam através dela, e dentro de sua cela. Nela, a menina aterrorizava tanto quanto o monstro, não com uivos, mas com sorrisos e perspectivas de voo-solo como os super-heróis de outro planeta.

Ela passeou como princesa pela feira e desfilava como se o capeta não estivesse lá. Era o próprio diabo que urrava, digitava, mentia, distorcia, negava a doença social, mascarava as laranjas podres que faziam a feira feder. A menina, se sentindo corajosa, começou a enfrentar os beatos vestidos de negação do óbvio, de reprodutores bovinos do mais do mesmo.

Será que a menina nunca desconfiou que o homem, à noite lobisomen, que a besta-fera sonha com o Império-povoado? Que só morariam nele aquelas donzelas que fizessem juras de amor. Que a função da menina hoje desgarrada, ontem apegada às mordomias políticas como uma Viúva espalhatosa, seria orar em prol do capitão-coronel que sacode suas joias penduradas num punho de ferro.

A menina, depois de quase um ano e meio, se desgarrou. O povoado ficou assustado porque ali, numa Antares onde ninguém morre de vírus ou gripezinha, morreu a verdade construída como epidemia. Não uma pós-verdade, mas uma verdade sem vergonha, com intenção messiânica e que se esconde – durante o dia – nas roupas sóbrias, na fala mansa e educada do cidadão de bem. Justamente aquele que cobiçava a menina, desamparada, mas apaixonada pelo professor.

Nos mistérios da meia noite, a menina e o lobisomem sabem quem fica, quem vai e quem foi. Não estão mais juntos, mas tem objetivos idênticos: serem vistos como o novo Roque Santeiro.

Já para os moradores do povoado, chamados pelos vizinhos de Admirável Gado Novo, os mistérios da meia noite voam longe.


Comentários

Chrys Leite disse…
A ficção imita a vida ou a vida imita a ficção? O fato é que essas obras de um passado recente nunca foram tão atuais.