Dia de jejum (Crônicas de uma epidemia # 9)

Imagem: Ryan McGuire, por Pixabay

Marcus Vinicius Batista

Sou um brasileiro médio. Isso significa que sou medíocre, comum, ordinário, sem grandes poderes. Nada especial; no máximo, único. Sou e não sou este que vos escreve. Não cabe a você nem a mim mesmo adivinhar quais partes são minhas e quais partes deste relato são de meus amigos, parentes, colegas, conhecidos, vizinhos, gente com menos dinheiro, gente com outras riquezas, gente que conhecemos somente de dar um alô para não torná-las invisíveis ou para não nos tornarmos tão irrelevantes na caminhada delas.

Sou o brasileiro médio para quem você fala, para quem você promete, para quem você ordena – seus instintos ditatoriais não conhece o verbo pedir – que se faça jejum na data de hoje. Seu sobrenome do meio não te dá características de “escolhido”, não te garante ser o Messias a ponto de apontar quais sacrifícios serão feitos em teu próprio benefício.

O maior engano é acreditar que o dia de hoje é dia de jejum. O brasileiro comum faz jejum diariamente, trocando somente de sofrimento, de abstinência, de privação. Os brasileiros médios continuam a te dar atenção – e cada vez menos – porque são crentes, no sentido de que são esperançosos de que amanhã será melhor do que hoje, e hoje será capaz de apagar o ontem, de modo que ontem perdoará anteontem, numa espiral de fé, de um sincretismo religioso capaz de acender vela até para mau defunto, quando o que vale é aliviar a dor corrosiva da falta. Da fome.

O jejum é diário. Chamamos também de fome. O brasileiro médio é aquele que toma copos e copos de água para acalmar o corpo, os ânimos, preservar o otimismo, o sorriso, o que resta do humor. Jejuar é renovar o dia, mesmo que o ar esteja viciado, infectado, contaminado.

O jejum, para muitos, começa cedo e estende além do por do sol. O jejum começa na falta de meios adequados para nos levar de um lugar a outro. O brasileiro médio sofre de inanição a cada vez que precisa alimentar parte de seu dia com migalhas de paciência dentro de caixas de metal sobre rodas, que sacodem, espremem, fervem de calor e o faz perceber que melhor do que ser sardinha é poder ter recursos para comprá-la.

O jejum deveria garantir nossa imunidade, deveria nutrir os anticorpos contra quaisquer doenças, não importa qual mutação de vírus, qual bactéria, qual ser microscópico que amaria invadir o corpo. O jejum o acompanha nos meses de espera por uma consulta, nas semanas de burocracia para um remédio que percorre muitos desvios de rota até pousar numa prateleira de unidade básica, na fila por internação, nos rostos exaustos de profissionais mal pagos, em sua maioria, que operam milagres – esses sim – para dar conta do dia que se repete rigorosamente igual.

O jejum já existe para o brasileiro médio, que se acostumou com o bolso vazio (acostumar não é aceitar), que vive numa crise pré, durante e pós-pandemia, ciente de que um vírus ou dois não farão diferença. Ele é um doente financeiro. A distinção também não existe nas mutações de terno e gravata que se sentam nas cadeiras dos palácios. O poder sempre adoece.

O jejum é um episódio a mais de um isolamento que acontece desde que se nasce. O isolamento social é redundante para muitos brasileiros médios, assim como os sacrifícios que se pedem como se fossem sacramentos. Nada mudou, de fato. Quem se intitula herói tem pés de barro, salpicados pelo esgoto a céu aberto que dá a honra do brasileiro ser estudado como um ser exótico, um alien no próprio quintal, invadido por ervas daninhas cínicas e demagogas.

O jejum é menu de dieta cotidiana para o brasileiro médio, que sonha com a prateleira do supermercado, a vitrine do shopping como extensões da geladeira de casa, se esta também não for como a do Vinicius de Moraes, que não tinha teto, não tinha nada. Jejum não é escolha, é sina.

A desnutrição compulsória está nos filhos do brasileiro médio, aqueles que não são herdeiros – herdar a ausência de tudo? -, que sonham com a escola porque tem merenda, que choram quando ela fecha porque estarão de férias de carne, verduras, sobremesa. Desnutridos já são os brasileiros médios, de vida que é reprovada por todas as escolas da mesma vida, as que ensinam, as que exigem, as que punem como fator de existência.

O jejum cobra por disciplina, por planejamento no sofrer, no não ter. O brasileiro médio não descansa. Jejum. Jejum. Jejum. Não há lazer para quem não tem direito à cultura. A poder escolher o que ver. A mal saber o que é ler. A desconhecer o que é um cinema, um teatro, um passeio, uma viagem.

O jejum é de mundo, fechado, enclausurado para quem não está no andar de cima. Não há escada para lá, quando muito aparece uma portinhola, aberta para acasos e exceções. E que se fecha sem horário marcado. O brasileiro médio é paradoxal. Obeso de criatividade, esquálido de oportunidades.

Por que fazer jejum só hoje, caro Messias? O brasileiro médio conhece a reza de trás para frente. E cuidado: às vezes, ora para o santo errado, mas muda de Pai Nosso para Ave Maria quando reconhece o pecador.


Comentários

Chrys Leite disse…
Nosso jejum já está durando tempo demais... Jejum de equidade, de empatia, de conhecimento... A gente quer é abundância... De respeito, de inteligência, de educação, de saúde, de competência...
Vera Blank disse…
Texto forte, pungente, que clama por um país melhor, por estudos, por educação, que devolvam ao povo a dignidade e a alegria de ser brasileiro!