Entre o capitão e o médico, existem heróis? (Crônicas de uma epidemia # 11)

O ministro, um herói? 

Marcus Vinicius Batista

Os heróis aparecem durante a guerra, nunca antes dela começar. Os heróis só receberão essa missão quase divina se houver o caos, o inferno para que eles possam combater com seus superpoderes. Os heróis colocam seus uniformes depois que o conflito e a perversidade se instalam; em tempos de paz, eles estão destinados à insignificância e ao silêncio da vida anônima.

Os heróis se revelam conforme os desejos e o nível de desespero de seus espectadores, testemunhas de seus feitos, amantes de suas proezas a ponto de distorcê-las em prol de suas crenças, de suas convicções. Todo herói carrega consigo certa projeção de quem o endeusa.

Todos querem um herói para chamar de seu, não um sujeito de capa e espada para nos espetar em nossas tolices ou mediocridades. Ele não dá lição de moral...dá exemplo, valorizado ou execrado conforme a perspectiva de seus aliados ou inimigos.

Os heróis do momento dividem opiniões. Aquele que deveria ser uma espécie de Robin tentou tomar o volante do batmóvel, crente de que o Homem-Morcego perdeu o controle do veículo. Ou será que mudou de rota para atender outros moradores da BatCaverna.

Na guerra de histórias e versões, o herói-médico representa a criatura que supera o criador. Ele se veste como novato, como se não tivesse um rastro de ódio na biografia, usa máscara para simbolizar que apoia os oprimidos e, em vez de capa, traja como segunda pele o colete que marca o povo e seus sacrifícios. Como diria um herói mexicano, seus movimentos são friamente calculados.

Um herói que se diz clássico faz sacrifícios pelo alheio. Ele também exige o martírio dos outros para que, pelas suas ações (reais ou fictícias), se torne mártir. Um general não abandona seus soldados. Um médico não abandona seus pacientes. Um capitão não abandona seu navio e seus tripulantes, ainda que conheçamos fábulas de capitães mitológicos que – ao contrário de Ahab – correm quando a primeira Moby Dick aparece no horizonte.

As guerras precisam dar nomes aos bois. Ou às baleias. Só assim se tornam concretas aos olhos dos espectadores, só assim se justificam como banhos de sangue para que os soldados rasos aceitem estrebuchar nas trincheiras, territórios que jamais serão visitados pelos comandantes do tabuleiro.

Personificar os heróis é a receita para que o público se identifique com a história. Mas é vital que nasça um vilão, para que o herói explique moralmente seus atos e se encaixe como quebra-cabeça no desespero de quem somente resta sobreviver. E o antagonismo entre eles precisa ser cristalino, de modo que qualquer pessoa que pare para escutar o conto de fadas compreenda a moral da história. Assim, o capitão cutuca o médico, o médico faz cócegas no capitão e ... os dois riem de cair de costas. Não há Batman sem Coringa, Coringa sem Batman, a loucura se realimenta dos dois.

O herói personificado conta a angústia do público, ávido por soluções tutoriais, por uma mentoria na qual todas as encruzilhadas se fundem numa estrada única, como num passe de mágica rumo ao pote de ouro no pé do arco-íris. Este desespero afeta a memória dos espectadores, disposta a perdoar, ponderar, amenizar, costurar o passado como um novo presente, dando graças se o futuro desejado vier, seja ele um frankstein ou qualquer outro monstro. Afinal, o herói estará lá sempre, pronto para nos salvar na próxima virada de página da História.

A simples presença de um salvador da pátria, capaz de substituir qualquer patriota que venha a nos decepcionar, garante que o passado será enterrado como o vilão que morre (ou é preso) no clímax pré-final feliz. O novo herói é um novo patriota que, acima de tudo, preserva a Pátria e seu estado de coisas.

Até ontem, muitos sabiam que o herói conspirava com o clube dos malfeitores, mas agora ele mudou de lado. Puxa, mas ele ainda almoça com quem deseja dominar o mundo. Você não entendeu, ele está buscando informações para dar o golpe final e reduzir a vilania a pó. É estratégia de jogo. A quem beneficia é história para outro dia.

Este esquecimento seletivo reforça o falso herói, o ser antes mitológico, como inimigo. A nova “narrativa”, construída com a morte dos neurônios que nos apontavam a versão mais próxima da realidade, adormece o arrependimento de quem se apaixonou pela pessoa errada. Uma paixão alertada por vizinhos, parentes, amigos, colegas, espíritos, todos que hoje parecem ter bom senso, que antes viviam em delírio.

Agora não é hora de dar o braço a torcer. É a hora de louvarmos o novo herói, dizem os arrependidos não assumidos. Este discurso calculado anestesia o que virá, a decepção de se perceber que crer num herói é sim parte de muitas culturas, mas crer em qualquer um que cumpre sua obrigação é retórica tola, de um espectador que se não se vê enganado sucessivamente pelo narrador, pelo protagonista, pelos coadjuvantes e, por que não!, por si mesmo.

Escolher entre dois “heróis” não é garantia de que a guerra será vencida, muito menos concluída. Talvez a única garantia seja que muitos morrerão no campo de batalha, menos eles, os “heróis”, saindo ou não antes do final. Eles sempre sobrevivem nas histórias da carochinha.

Comentários

Unknown disse…
quem colocará o guizo no pescoço do gato?