É preciso dizer (Crônicas de uma epidemia # 13)



Marcus Vinicius Batista

Sem floreios, pois o vírus nos adoece. Sem receios, pois a economia nos enfraquece. Sem devaneios, pois a política nos esquece. E sem rodeios, pois o preconceito só nos estremece.

É preciso dizer que pessoas morreram, morrem e morrerão nesta epidemia. Como em todas elas. Aos montes. Aos milhares. Dilacerando famílias, passados, presentes, futuros e estatísticas. Os números serão hoje e sempre detalhes de uma tragédia humana, rodapés da História que – quando bem feita – é feita de gente, com gente e apesar de certa gente. História é feita por histórias, que – de vez em quando – faz contas, e não o inverso.

É vital falar que muitos estão sofrendo, e não é por perda de privilégios, como alguns esperneiam. Sofrem porque precisam de um benefício que nunca chega, justamente por nunca terem tido bônus, plano de carreira, participação nos lucros ou sinônimos do corporativês. Sofrem porque precisam trabalhar, pois não possuem o que vender ou entregar, exceto o confirmar o delivery do que já tinha dono e passará a ter outro.

É essencial explicar que aqueles que te perturbam hoje podem te salvar amanhã. Aqueles que são marginalizados por seus jalecos e aventais, muitos confeccionados por voluntários ou emprestados por pessoas com solidariedade sem câmeras. Aqueles que se arrastam em plantões dobrados, dormem pelos cantos de salas assépticas, respiram sem máscaras, usam luvas precárias.

Eles sofrem porque nem sempre salvam, mas amenizam a dor, escondem os próprios ferimentos e carregam corpos, antes de fumar um cigarro lá fora como o remédio mais à mão para a alma em sangramento.

É obrigatório relembrar, como desenho da primeira infância, que o vírus não tem ideologia, religião, gênero, etnia, conta bancária, preferência de clube, rede social ou veste camisa de empresa, seja franquia ou empreendedor individual. O vírus não escolhe vítimas, visita sem ser convidado, mas se aconchega nas entrelinhas dos corpos onde se hospeda. O vírus não expõe nossas mesquinharias, nós as oferecemos de mão beijada a cada postagem, gritaria pela janela ou filas de carros que não são funerários, mas defendem a morte. Dos outros.

É questão de ordem repetir que qualquer epidemia provoca estragos econômicos. Essa também provocará, mais do que já provocou, quando a nova falsa normalidade chegar. Todos perderemos, exceto quem se movimenta, opera, contamina, usufrui, explora e quantos outros verbos quisermos adotar para os adeptos do modelo. Modelo que se manterá vivo, pulsante, virótico e funcionando como um bactericida para os seres minúsculos que não o alcançam em seus contracheques, pequenos investimentos, financiamentos, empréstimos, aplicações e outras criaturas que respiram por aplicativos.

É redundante contar que nenhum de nossos líderes, gostemos ou não, votemos ou não, previu esta história que nos amedronta. Nenhum deles esteve saudável o suficiente para se ater aos sinais. Todos dançaram entre o fingimento e o desdém, entre a arrogância e a negligência, vacinando somente a si mesmos, infectando-se pelo vírus (a tal da mosca azul) do poder. E, como atestado de insanidade, deram positivo para o que foram desde qualquer dia.

É, acima de tudo, evidente escrever que o vírus não matará a maioria de nós. Nem nos ferir conseguirá. Nem precisaria. Nós nos feriremos de arrependimentos, nos esfaquearemos com nossos preconceitos, nos resguardaremos de saudade, nos olharemos surpresos com novos corpos pós-reclusão, nos magoaremos pelas angústias que criamos ou adquirimos de origem desconhecida. Ansiosos éramos...ansiosos seguiremos se optarmos por repetir o jeito de viver.

Quando as portas se abrirem, talvez tenhamos aprendido ou não sobre nosso modo de vida e se é necessário modificá-lo, se teremos capacidade e habilidade para replantarmos nossos quintais, se abraçaremos e beijaremos nos inúmeros reencontros ou somente no primeiro, abstêmios da aceleração e da produtividade sem pensar.

Se tivéssemos qualquer certeza, jamais seria preciso dizer.

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