A primeira crônica



Marcus Vinicius Batista

O telefone tocou pouco depois das 8 horas. Era uma segunda-feira de maio de 1993. Um dia depois do Dia das Mães. Acordei cedo para entrar no ar no primeiro jornal do dia, na Rádio Atlântica. Morava em Santos, a emissora ficava no Guarujá; então, a entrada era por telefone fixo. Celular era coisa de americano; internet, de marciano.

Eu trabalhava na rádio há três meses. Tinha sido contratado exatamente no último dos 90 dias de experiência como office-boy numa agência de navegação. Tinha feito um freela nas eleições municipais de 1992 pela rádio Cultura e só. Era essa a minha experiência fora da faculdade de Jornalismo.

Fui contratado pela rádio com dois colegas de sala: José Ricardo Santos e Zilda Macedo. A cobertura era geográfica, mas também para evitar gastos. Zé Ricardo acompanhava Guarujá. Zilda, Vicente de Carvalho. Eu ficava em Santos.

Combinei com meu chefe na sexta-feira anterior, que faria duas entradas ao vivo. Numa delas, o noticiário convencional da cidade. No final da edição, perto das 9 horas, eu leria uma crônica sobre o Dia das Mães. Na prática, escrevi no final de semana um texto sobre minha mãe, Dona Zuleica. Oficialmente, estava estudando.

Era a primeira crônica que escrevia na vida. Minha imensa biografia literária se resumia a meia dúzia de reportagens – nenhuma delas digna de ser literatura -, uma experiência como mestre de cerimônias de festa de 15 anos (quando extraí toda a breguice que reside em mim) e as redações do Ensino Médio.

Que a professora Kátia Paletta não leia a confissão, mas chegava a produzir seis textos diferentes para colegas de sala, que retribuíam o favor nos trabalhos de Desenho Técnico. Eles queriam ser engenheiros. Eu, jornalista, sem conseguir ir além de um cubo básico. O mundo pragmático dos 17, 18 anos.

Quando entrava no ar, meus pais estavam se levantando. Normalmente, meu pai me ouvia enquanto fazia a barba e tomava banho. Havia um aparelho no banheiro. Era o único momento que a Atlântica (590 AM) vencia a vizinha Jovem Pan.

Minha mãe ouvia o filho repórter na cozinha, enquanto passava o café. A janela do banheiro dava para a área de serviço. Então, eu matava dois ouvintes com um aparelho só.

Naquele dia, me lembro de ter explicado que, em caráter excepcional, eu participaria duas vezes do programa. Não dei detalhes. Não disse que era surpresa. Apenas um comunicado que poderia ter sido em três vias, com carimbo e início com “Venho por meio desta...”

Tomei café sozinho entre as entradas ao vivo. Não conversei muito, estava com a cabeça longe, pois me pressionava sobre o texto, especulava mentalmente sobre as reações deles, principalmente de minha mãe. Temia – como temo até hoje – o fantasma da pieguice ou a falsidade intelectual.

Corri para meu quarto quando o telefone tocou pela segunda vez. Saquei o texto datilografado da gaveta e, como sempre, me postei ao lado da mesa, em pé. Troquei meia dúzia de palavras com o operador de som e ele me colocou no ar.

Rogério Stonoga, o editor, e José Manoel Ferreira Gonçalves, engenheiro e comentarista político (além de dono da emissora), falavam alguma coisa sobre a importância das mães. Alguma coisa porque, se não tinha a menor ideia do que falavam por nervosismo no momento, imagine hoje 27 anos depois! A idade apagou...

Eles me chamaram. O repórter que faria uma homenagem a todas as mães. Não posso dizer se o texto era genérico ou não. Desconfio que fui egoísta e falei para Dona Zuleica mesmo. Enrijeci o corpo, empostei a voz e disparei a ler, sem erros, sem gaguejar, numa cassetada verbal só.

Não escutava nada. Só minha voz e o retorno na linha telefônica. Quando acabei a leitura, escutei barulhos nos bancos da cozinha e soluços. Tinha acertado a mão. As lágrimas costumam ser a reação mais verdadeira de quem se sensibilizou com um texto. As palavras têm força, mas – dependendo de quem vem – podem esconder as ofensas à inteligência. As palavras têm força e função histórica, mas nenhuma delas consegue represar as águas dos olhos.

Fui para a cozinha e abracei minha mãe sem dizer nada. Ela estava em pratos e me agradecia. Era o texto do ano. Texto esse que nunca mais li. Não tenho, 27 anos depois, a menor ideia do que escrevi. Fui honesto com meus sentimentos e basta.

O texto, em máquina de escrever, se perdeu em algum momento quando a datilografia virou digitação. A primeira crônica foi literatura. Hoje, é memória.

Comentários

Cidinha Santos disse…
Deve ter sido um belo texto, a exemplo do que você continua escrevendo até hoje. Tocando nos sentimentos dos leitores e leitoras como eu, fazendo lembrar das nossas mães. Dona Zuleica e Dona Maria, minha mãe, já não estão nesse mundo caótico onde ainda continuamos resistindo.
Anônimo disse…
*Marcus não sei o que você escreveu, entretanto, muitas lágrimas escorreram pelo rosto, porque sei como escreve com sinceridade e intensidade. Não abandone o Jornalismo, precisamos das suas crônicas. Beijo para a mamãe.... ⚘🍂🍁🦉 Sueli Calvet
Anônimo disse…
*Marcus não sei o que você escreveu, entretanto, muitas lágrimas escorreram pelo rosto, porque sei como escreve com sinceridade e intensidade. Não abandone o Jornalismo, precisamos das suas crônicas. Beijo para a mamãe.... ⚘🍂🍁🦉 Sueli Calvet
Chrys Leite disse…
Que surpresa emocionante deve ter sido! Eu teria morrido de tanto chorar! E parabéns pelas mil postagens no blog! Siga em frente! Queremos comemorar as próximas mil!