O carro de boi (Crônicas de uma epidemia # 07)




Marcus Vinicius Batista

Vários amigos juraram de pés juntos que viram, no último final de semana, carros de boi nas ruas da cidade onde moro, bem pertinho do mar. Se não fossem as fotos e os vídeos, apostaria em vertigem por isolamento físico.

Miragem ou não, lembranças surgiram, de tempos melhores. E aqui as escrevo:

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Era criança quando vi os carros de boi, não sei precisar a idade. Viajava quase todos os anos para a cidade natal de minha mãe, minha avó e meu tio, no interior de Minas Gerais. Doze horas de carro, com paradas adocicadas por balas, bolinhas de queijo em conserva e pães de queijo, que permanecem intactas na memória e que se repetiram há quase três anos, quando visitei Luz pela última vez.

Hoje, sei o quanto o nome da cidade, para um visitante, ilumina, refresca e reabastece diante de um cotidiano corrido, produtivo por pretensão, urgente por paranoia, às vezes por minha culpa, muitas vezes por invasão alheia. Luz, para um visitante ocasional como eu, cura todos os males somente por alterar as relações espaço-tempo (e sem exigir qualquer conhecimento de Física, basta saber respirar, sentir e observar). Basta tirar o pé do acelerador.

Acontecia de viajar para lá duas vezes por ano, sempre nas férias escolares. Entre as atrações da fazenda de parentes e as novidades de uma cidade pequena, havia a Festa anual no Pavilhão de Exposições. É um circuito, uma semana em cada município, com negociações entre os produtores, leilões de animais, shows, comidas, bebidas, nada diferente do que se espera, tudo relevante para acalmar as expectativas de meses.

Foi numa destas edições da festa que eu vi o desfile. Nunca mais o testemunhei, ou porque fui na festa em dia de outras novidades, ou porque não prestei atenção por ter perdido a capacidade de ver, aquela que a vida adulta captura e adormece com suas regrinhas e pudores.

O berrante avisava a chegada dos carros de boi. Um toque único, um som lindo, delicioso como café quente coado na hora, inesquecível para quem um dia o ouviu na zona rural, durante a lida na roça, no cortejo de um peão e sua boiada. Meu pai tinha (acredito que ainda tenha) um berrante na casa dele. Nas brincadeiras de moleque, me atrevi a arranhar e machucar o instrumento. Hoje, o respeito exige a admiração, pura e simplesmente. Ele é sacro, não é para hereges.

Os carros de boi são lentos por natureza, por necessidade, por limitação, por ensinamento e por princípio ético. Eles nos ensinam que a vida seguirá seu caminho, na cadência de uma dança de ritmo único, no chacoalhar de um quadril de centenas de quilos, que se move independentemente do quanto tentemos acelerar, do quanto tentemos parecer corredores que justifiquem nossa imagem de ocupados.

O carro de boi se ocupa de acompanhar as batidas dos cascos do animal na terra batida. O boi dita. O condutor não faz cena. A carga se aquieta. Todos sabem que não é o bicho-homem quem manda.

Cada carro que passava parecia uma reprise da versão anterior. Dois bois, um homem. Todos concentrados no trajeto. Todos com seus trajes de gala, naturais ou culturais. Todos cientes do quanto era necessário dar valor à travessia, ao desfile. Chegar era fato consumado, para que se aborrecer com isso?

O carro de boi, não para os olhares inquietos de uma criança, mas para alguém que reza para voltar a sê-la, se importa com o essencial. O carro de boi é um só a cada um que atravessa o desfile: bois, homem, carcaça e rodas de madeira. Um só que pouco se lixa para quem o vê, que segue em seu próprio mundo, com a via pré-determinada, com o tempo a seu favor.

O carro de boi me entrega um presente que poderia parecer de grego, de um egoísmo por ignorar tudo em volta, de ignorar todo um universo frenético de negócios, de festa, de exageros etílicos e gastronômicos. Não, o carro de boi era e não era daquele Pavilhão de Exposições. Era porque representava a chama de uma cultura popular que a arrogância urbana teima em diminuir. Não era justamente pelo mesmo motivo, pela insistência em se mover como um caramujo numa corrida de coelhos. A pergunta estava no ruminar mecânico dos bois: para que aceleram se nos encontraremos – o mais importante - na chegada?

Olhava para aqueles carros de boi e, não me atrevo a explicar, paralisei. Admirava aquela procissão, olhava para os peões, tinha vontade de acompanhar os bois, não para ser como eles, talvez por solidariedade de um destino traçado à revelia, certamente por ver a beleza num bicho que não fazia parte da minha origem, da minha vida perto do mar.

Como criança, perdi o interesse assim que os carros de boi passaram. Os brinquedos, as comidas, outras crianças me levaram para outras histórias. Não sabia, até agora, que a mensagem dos bois, de seu carro e do homem que trabalha para eles era simples: o segredo da lentidão por natureza está no ponto no qual, para entendermos nossa existência, necessitamos ser lentos na digestão, no ruminar, no andar...Só entendemos nosso tempo quando nos colocamos nos tempos deles, dos bois.

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Meus amigos insistem que viram, no último final de semana, um cortejo de carros de boi na cidade onde moro. Vejo fotos e vídeos e contesto: ali não era um desfile de carros de boi. Ali, eu vi um simulacro de vidros escuros, metais blindados, mentes fechadas, seguidores de qualquer coisa, de qualquer modo de vida que em nada se assemelha ao cenário por onde desfilaria um carro de boi.

Eu prefiro minhas lembranças, em respeito aos bois, ao homem que é conduzido por eles, ao carro que mantém viva uma das tradições mais poéticas do campo. No meu caso, de uma cidade iluminada por seu próprio nome.

Comentários

Que texto mais lindo, Marcão! Repleto de sensibilidade, do menino-homem... que sabe distinguir o tempo perdido numa vida de inutilidade, do tempo enriquecido pelo que de fato enriquece nossa vida! Muito obrigado!
Jr. Landim disse…
Preciso professor, como um tocador de berrante no seu blues ao cair do sol. Pude sentir o cheiro da gosta do boi e o Lamento da roda de madeira com sua música hipnótica. Sobre a carreata de lata e dióxido de carbono urbana... O estrume daqui não tem o aroma gostoso de capim.
Vera Blank disse…
Muita sensibilidade ao descrever o quanto precisamos de um tempo para reflexão, de um andar mais lento, menos corrido dos dias atuais... Precisamos parar nosso ritmo frenético de fazer, mostrar, aparecer...