Muito prazer, Coronavírus (Crônicas de uma epidemia # 02)

Eu e minha turma, caros hospedeiros

Marcus Vinicius Batista

Caros hospedeiros,

Tenho total consciência (força de expressão) de que minha vida jamais será longa, mas sei que causo estragos por onde passo, também ciente de que parte deles tem a ajuda de vocês, meus anfitriões. Este que publica meu depoimento não psicografou o texto, mas tirou minhas palavras de algum microscópio qualquer. Sou uma entidade neste momento da História. Ainda que não me vejam, sabem que existo.

Meu nome é Coronavírus. Ou CoronavAirus, se quiserem utilizar a expressão em inglês, tão gritada por celebridades nas redes sociais. Meu apelido é Covid-19, uma referência numérica aos meus irmãos menos evoluídos.

Nunca causei tanto alvoroço. Muita gente morreu, mais gente doente, uma multidão de preocupados. Esses já estão convertidos, cada qual a seu modo. O que me dá imenso prazer é observar quem não acredita no meu poder de fogo, sequer na minha presença.

Eu me divirto na minha minúscula capa proteica. Observo aqueles que berram na TV que sou fantasia, que provoco histeria, que preferem as praias, os shoppings, as aglomerações. Vivem como férias. Ficam tão grudados quanto eu e meus pares quando nos multiplicamos. Multiplicamos nós, multiplicamos vocês, os doentes.

Não posso evitar. É da minha natureza contaminar os lugares por onde passo, pular de hospedeiro em hospedeiro pelo transporte público dos espirros, dos apertos de mãos, dos perdigotos ejetados. Ah...nada como uma tosse seca para irrigar meu dia e me dar uma nova moradia. Cada paisagem quentinha, úmida, pouco saudável.

O que me surpreendeu, na verdade, é que jamais imaginaria que seria da natureza de vocês, teoricamente superiores, crentes como evoluídos, se contaminarem de forma voluntária. Vocês pagam para ver, sentir, adoecer, correr risco de morte. Adoram um milagre no qual podem responsabilizar os outros.

Como adoraria viver o mesmo tempo que vocês! Mas temos uma semelhança. Como metáfora, somos vírus para um mesmo planeta. Somos semelhantes uma vez. Aliás, duas! Vivemos sem pensar no amanhã. Eu, porque não tenho tempo. Vocês, porque são escravos da urgência da vaidade, da emergência da ganância, do frenesi da arrogância.

A outra é que, como vírus, sou egoísta por essência. Só sei fazer uma coisa: transmitir, contaminar, extrair o que posso de meu hospedeiro e, se possível, destruí-lo. Podemos escolher outros sinônimos para minha missão de vida. Mas gostei de saber que vocês também pensam assim. Desculpe-me: agem assim, justamente porque não pensam.

Não sinto nada sobre os estragos que tenho provocado além da biologia. Mas, informado que sou, percebo que estou destruindo o modo de vida de vocês. Economia, política, sociedade. Peço desculpas novamente: é muita pretensão afirmar que estou destruindo. Sou testemunha ocular da História, para sugar uma expressão de vocês. Testemunho como vocês não estão preparados para uma espécie tão frágil como a minha. Basta existir...

Quando não vejo a autodestruição, me delicio com a capacidade de vocês em brigarem por questões irrelevantes, por lutarem as batalhas erradas. Tenho o líder de uma nação a meu favor. Ele se considera invulnerável (desconfio que não, talvez já está com parentes meus em seu organismo). Muitos em volta dele estão doentes, mas já que ele insiste...

Para mim, o cenário é fértil. Deixo herdeiros sem controle, não consigo sequer nomear tantos descendentes. Como vocês preferem ganhar a conversa em vez de se prevenir contra mim, a vida segue com a colheita farta, abundante, contagiante (não resisti à palavrinha do momento).

Olha, agradeço a meus hospedeiros pelo apoio. Sem vocês, não teria tanto espaço na mídia, nas igrejas, nas escolas, nos palácios, nas suas casas. Sinto-me uma celebridade e, como ela, vou desaparecer, mas sem deixar de viralizar antes. E que venha a versão 20 de mim mesmo.

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