A bolha e o dedo gordo (Crônica de uma amputação)


Marcus Vinicius Batista

Hoje completa um mês que entrei no Hospital Beneficência Portuguesa, em Santos, para uma consulta médica. A consulta evoluiu, em duas horas, para uma internação de 11 dias.

Quarenta e oito horas depois de me sentar na maca de uma das salas do ambulatório e tirar uma das sandálias, eu estava deitado em outra maca, no centro cirúrgico. O resultado foi a amputação do terceiro dedo do pé esquerdo.

A amputação aconteceu nas brechas irônicas que se infiltram entre meus erros, meus consertos, minhas falhas estruturais e meus acertos. A ironia nasceu como bolha, fruto de um momento de vida com dieta decente, exercícios físicos contínuos e prazerosos, pressão arterial controlada e 20 quilos pulverizados nos números digitais da balança. O pacote que me permitia seguir em ritmo estável no trabalho, na rotina.

A bolha foi, em princípio, o efeito colateral de nove quilômetros diários de andanças (e novas visões) pela cidade. A bolha se tornou uma infecção, combatida com pomada antibiótica e medicação via oral, eficazes para cicatrização, fogo amigo para manter a infecção concentrada nas entranhas do dedo do pé. Em cinco dias, com o agravante da diabetes, o dedo ganhou o sobrenome de “dedo gordo”, conforme os médicos chamam o quadro que resulta em amputação.

Um mês não se trata de uma data comemorativa, marco temporal ou início dramático, somente um começo de texto que inclui o contexto que te prepara, leitor, para o trajeto de meu desejo de conversarmos. A cirurgia e a recuperação seguem dentro das previsões (um técnico de enfermagem me disse ontem que o pé estava bonito, numa mentira generosa), e as reações diante do que aconteceu foram serenas e/ou pragmáticas, dependendo do episódio. Em outras palavras, vai tudo bem em termos clínicos.

Este caminho de 30 dias me fez escolher, de forma obrigatória para não dizer coerente, o sentido da bifurcação que estimula o pensamento, a avaliação dos sentimentos e emoções que envolvem a mim e as pessoas por quem tenho profundo amor e afeto. Coerente porque hospitais, problemas de saúde e tratamento são lições. O aprendizado é interno, porém deve se estender aos outros, ao que eles podem nos dar, às formas de nos surpreender e nos decepcionar.

Uma amiga recente me presenteou com um dos melhores depoimentos que recebi neste momento. Guardei o relato dela no cofre, compartilhei com Beth, porque simplesmente foi honesto, aberto, sem rodeios ou convenções sociais. Ela me pediu desculpas e disse que, diante de uma pessoa querida que enfrentava uma crise de saúde, fingia que nada estava acontecendo. E, na sequência, me explicou que reconhecia este comportamento como algo a ser trabalhado e que já o fazia em terapia. Por isso, havia me procurado para expressar o que sentia.

O tom da fala, as palavras que compunham o pano de fundo, a dinâmica do nosso relacionamento e a biografia dela não me deixaram dúvida. Não havia outra opção senão entendê-la e pensar como foi difícil externar o que se sente num mundo onde parecer feliz é a regra, construir personagens é parte do teatro social, esconder-se sob o manto da tecnologia soa como mantra de um discurso vulnerável e superficial.

A honestidade da conversa que tivemos indica que, naquele momento, o falar de si mesmo e da paralisia que conduz ao “fingir que nada ocorreu” são a tentativa concreta de se colocar no meu lugar, de perceber a falha na perspectiva dela e, diante das circunstâncias e dos limites individuais, avançar em minha direção.

Prefiro o diálogo deste modo do que a máscara do “não quero incomodar” (nunca dito, só pensado) ou do silêncio primo do sumiço. Alegra-me nesta fase testemunhar a presença de pessoas no hospital ou agindo com pequenos (grandes) movimentos, consciente de que elas têm pavor de gente de branco com estetoscópio no pescoço ou de alas de cor bege povoadas com camas, seus fios e aparelhos que arrotam números 24 horas ao dia. Elas não fizeram discurso de ocasião, se esconderam nas frases programadas da Internet ou sucumbiram às fantasias sobre o que teria ocorrido.

Talvez tudo se resolvesse com uma simples pergunta: “vou te incomodar se nos encontrarmos?” O diálogo olho no olho ou voz a voz ainda funciona como o melhor remédio, como o formol que conserva amizades, coleguismos, relacionamentos em geral.

Convivo com hospitais há dez anos, ano a ano, seja como acompanhante, como paciente, como estagiário, como profissional. Perdi gente essencial lá, vi pessoas que me tornaram melhor saírem sorrindo depois da conversa com a morte, conheci homens e mulheres que sabem muito além do diploma ou colecionam equívocos pelo Complexo de Deus que as acomete.

Hospitais ensinam tanto sobre gente. Mostram como devemos ser pacientes perante um mundo utilitarista, materialista e automatizado. Apontam como o mínimo é o mais importante, o detalhe das pequenas experiências cotidianas faz o dia valer e ceder o cetro para o próximo.

Hospitais ensinam sobre nossas limitações. E me ensinaram que medos, angústias e ansiedades podem ser tratados como devem e como merecem, não digo no sentido clínico, e sim nas gavetas mentais de cada um. Adoraria que eles não virassem fantasmas que estão só nas nossas cabeças.

Quando são classificados como miragens, esses fantasmas assombram pelo egoísmo, no qual somos incapazes de destinar algum tempo para as relações com quem juramos gostar, respeitar ou festejar de vez em quando. As relações humanas não sobrevivem na memória pelo glamour dos grandes feitos; pelo contrário, elas se perpetuam pelo anonimato do cotidiano, das experiências falsamente desimportantes.

O cirurgião e sua equipe levaram meu dedo. O dedo levou com ele a bolha que enganou ao se definir como cicatrizada. A bolha, (in)felizmente, deixou outra herança. Uma bolha que inspira e expira em todos nós, capaz de travar qualquer sujeito e sua normalidade e ofuscado de tal maneira que o outro corre risco de não existir se não aconteceu nada com ele.

Comentários

Cidinha Santos disse…
Excelente, Marcus, vc consegue fazer das suas experiências um aprendizado para todos nós. Sabia que viria algo excelente depois dessa vivência que você precisou encarar.