“Sou um homem livre” – A história do único brasileiro sobrevivente ao Holocausto

Andor Stern, em Auschwitz, em 2014
(Foto: Gabriel Pierin)

Aos 91 anos, Andor Stern ainda trabalha e mantém uma rotina de palestras pelo Brasil, nas quais fala de liberdade e do horror em campos de concentração

Marcus Vinicius Batista

Quando os soldados norte-americanos abriram a porta do vagão, Andor Stern mal conseguia se mexer. Ele perdeu a noção de quanto tempo estava preso no vagão. Desconhecia que estava em Seeshaupt, na região da Baviera, na Alemanha. Enquanto a maioria dos passageiros estava morta, ele delirava com as batatas que poderia cozinhar naquele momento. Luiz, seu amigo, explicou que não havia mais batatas. Não havia nada. Apenas a espera.

Andor havia passado quatro anos em campos de concentração nazistas. Entre eles, Dachau e Auschwitz, na Polônia. Em 1º de maio de 1945, sete dias antes do final da Segunda Guerra Mundial, Andor pesava 28 quilos e não comia há uma semana. Seu corpo tinha vários furúnculos, eczemas, sarna e um estilhaço de bala em uma das pernas. Ele estava sem as unhas dos pés e das mãos. “Você perde sua condição de gente.”

O brasileiro de família húngara, então com 17 anos, não tinha consciência de que estava em liberdade. “Eu não vivia, só existia. Só pensava em comida. Era um zumbi. Você só tem o segundo seguinte.” Andor acabou operado por médicos do exército dos Estados Unidos. Seu peso praticamente dobrou em 60 dias.

O relato sobre a vida nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial mantém cerca de 150 adolescentes e uma dúzia de professores em silêncio no Teatro do Colégio do Carmo, na Ponta da Praia, em Santos. Anualmente, Andor retorna ao local – ele vem pelo menos meia dúzia de vezes à cidade no período.

A adolescência de horrores em campos de concentração afetou o desenvolvimento físico de Andor Stern. Ele mede pouco mais de um metro e meio. Hoje, pesa cerca de 50 anos. Os 91 anos o levam a caminhar devagar, com passadas curtas, porém ritmadas. A surdez faz com que as perguntas sejam lidas via auxílio de microfone.

O próximo pedaço de pão

A imagem de um sujeito à beira de quebrar ao meio desaparece assim que ele abre a boca. O português com sotaque é firme, direto, objetivo, sem glamourização ou pose de vítima. Andor sabe que sua história impressiona e não poupa o público para que entenda o valor das coisas simples, dos detalhes das experiências, da liberdade e, principalmente, da vida. “Testemunhei um filho matar um pai por causa de um pedaço de pão. Passei quatro anos esperando pelo próximo pedaço de pão.”

Nascido no Brasil, Andor (ou André, como muitos o chamam) foi com a família para a Índia aos dois anos. Depois, todos foram morar na Hungria, país de origem dos Sterns. Com a guerra, todos foram aprisionados, separados e enviados para campos de concentração. “Os alemães se organizavam bem, inclusive na maldade.”

Assim que Andor chegou ao primeiro campo, com 14 anos, percebeu como seria tratado. A primeira ação foi tirar a roupa. “Um homem sem roupa, em público, perde sua capacidade de ser gente.” Depois, teve a cabeça raspada e o corpo coberto com creolina, um desinfetante que, em contato com o corpo, provoca ardência aguda.

O passo seguinte seria um banho e receber roupas, de qualquer tamanho, não importa se servissem ou não. As roupas não seriam trocadas nem durante o inverno. “No frio, como trabalhávamos na fábrica de cimento, usávamos sacos para cobrir os pés e forrar o corpo por baixo da roupa.” 

Andor Stern, em Dachau, em 2014
(Foto: Gabriel Pierin)

Outra maneira de se esquentar eram as fezes. Os prisioneiros não tinham como se limpar e as fezes presas ao corpo elevavam a temperatura. “Depois, batíamos as roupas quando secavam. Não era permitido lavar as roupas.” As latrinas eram coletivas, buracos no chão marcados com um X. Muitos caiam dentro delas e eram proibidos de tomar banho. Um deles foi Andor. “Fiquei coberto de cocô até o nariz. E seguíamos trabalhando.”

A fome

Andor aprendeu a esquecer da família por causa da fome. Ele se desligava da ausência da mãe, “se educava para não se lembrar dos parentes.” Luiz era a única pessoa com quem conversava sobre a fome. Ambos trocavam sensações e faziam refeições imaginárias.

Todas as noites, Andor fechava os olhos e se alimentava. “Imaginava uma parede, com armário, inclusive com tela para evitar moscas. Numa prateleira, os pães de todos os tipos. Na outra, os embutidos, incluindo o presunto e os salames. Na outra, os queijos. Sempre imaginava o queijo parmesão. Na outra prateleira, as compotas e as geleias. Comia três sanduíches por noite.”

Cheiro de carne queimada

A história de Andor Stern se transformou no livro “Uma Estrela na Escuridão”, escrito pelo historiador Gabriel Davi Pierin, professor no Carmo e no Universitas. O trabalho também ganhou uma versão em História em Quadrinhos. Andor e Gabriel, há cinco anos, viajaram juntos ao Leste Europeu, onde Andor revisitou os campos de concentração após sete décadas.

Em Auschwitz, Andor se incomodou com uma característica do lugar. Não eram os muros ou as lembranças. Era uma sensação, era a ausência de cheiro. “Gabriel, onde está o cheiro?” “Seu Andor, já se passaram 70 anos. Não há mais cheiro.” “Gabriel, não sinto o cheiro de carne queimada.”

Andor conta que os crematórios funcionavam 24 horas por dia e que, por isso, o cheiro de carne queimada não desgrudava dele. “Quando você tem vida, respira, tem metabolismo, o corpo é uma perfeição. Mas ali, você não sabe onde está, por que está lá. Você vê a fumaça e só depois descobre que é um crematório”.

A visita à câmara de gás também foi impactante. Até hoje, é possível ver as marcas das unhas que arranharam as paredes. “É o maior símbolo de desespero, da tentativa desesperada de se salvar”, explicou Gabriel Pierin.

Onde está Deus?

Andor não consegue explicar como sobreviveu. Uma única vez, ele pensou em desistir, correu em direção ao arame farpado, eletrificado, que cercava o campo de concentração. Morreria eletrocutado ou baleado por um dos soldados. No trajeto, lembrou-se da mãe Julia, separada dele no início da guerra e morta em um campo de concentração. Ela teria dito ao filho: “André, você ainda vai voltar ao Brasil.” Andor desistiu e retornou ao trabalho.

Em outra ocasião, ele e Luiz – seu único amigo – seriam transferidos para outro campo, onde o destino final seria a morte. Ambos foram salvos por um kapo, um judeu também prisioneiro que era transformado em capataz e ganhava privilégios, além de comandar outros judeus com violência física e psicológica.

Abel, o kapo, se posicionou na frente dos dois, os empurrou em marcha a ré em direção a uma barraca e ordenou que trocassem de blusa. Andor e Luiz estavam salvos. “Não posso responder. Não sei porque ele fez isso.”

Numa palestra na Estação da Cidadania, Andor tentou explicar para uma senhora como se sentia alguém que perdera a condição humana num campo de concentração. Ela insistiu que a resistência foi uma questão de fé. Andor apenas ponderou: “Senhora, em Auschwitz, Deus não estava lá.

Volta ao Brasil

Andor retornou ao Brasil em 1948, sem dinheiro e sem falar português. Aqui, se casou com Terezinha, com quem vive há 65 anos. Tiveram dois filhos e adotaram mais três. São mais nove netos e três bisnetos.

Na década de 60, estudou e trabalhou na IBM. Saiu de lá para abrir um negócio com um amigo. A empresa era responsável por emitir as contas de luz, telefone, água, além de carnês de IPTU em várias regiões do Estado.

Em 1968, Andor reencontrou o pai Estevam Stern, com ajuda da Cruz Vermelha. O pai vivia em Burgos, na Espanha. Os dois mantiveram contato até a morte de Estevam, em 1972.

Na década de 70, vendeu a empresa e migrou para a indústria. Chegou a ter duas fábricas de chapas acrílicas. Faliu em 1992, durante o governo Collor. Ele se reergueu na concorrência, onde trabalha até hoje. 

Andor, com a mãe Julia
(Foto: Arquivo Pessoal)

Consciência de liberdade

Ao final da palestra, uma das estudantes pede para ver a marca mais importante da guerra. No braço esquerdo de Andor, a tatuagem gasta pelo tempo: 83892. Este era o número que identificava o prisioneiro assim que entrava em um dos campos de concentração. 83892 foi seu nome por quatro anos. Hoje, ele brinca: “Não jogue no bicho. O número não dá sorte.”

Andor afirma que, aos 91 anos, vive os melhores anos da vida. Ele ainda trabalha numa indústria e percorre o país com palestras sobre a trajetória da guerra. No final de semana, ele estará em Blumenau (SC). Na segunda-feira, falará para estudantes universitários da UniBr, em São Vicente.

No livro “Uma Estrela na Escuridão”, Andor se lembra de quando retornou a Seeshaupt, dois meses depois da libertação pelos norte-americanos. Lá, fez uma projeção à beira de um lago. “Eu queria ter um sapato que não machucasse meu pé; se tivesse meia, seria então um luxo. Desejava uma roupa limpa que não tivesse piolho e que me cobrisse para não sentir frio. E também um bolso enorme que pudesse guardar um pão enorme para comer a hora que quisesse.”

A consciência da liberdade é, nas palavras de Andor, o oxigênio dele. “Nunca mais sai de lá (Auschwitz). Eu continuo lá. Não tem dia que, quando acordo, não agradeça minha cama maravilhosa, meu chuveiro quente me esperando, meu sabonete. Cada banho é um presente. Tenho roupas limpas à disposição. Quando vou para o trabalho, pego o caminho que eu quiser.”

Com a voz embargada, Andor respira e diz: “Eu sou um homem livre!” A plateia o aplaude de pé.

Obs.: Matéria publicada, originalmente, no Diário do Litoral (Santos/SP). 

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