Maria, um verbo


Marcus Vinicius Batista

As Marias fazem parte de nossas vidas. Da minha, da sua, da nossa. Não há como fugir, contornar, tangenciar, evitar, ignorar. As Marias vieram para nos proteger, orientar, apontar, fazer errar, consertar, nos amar.

Conheci Marias pela vida inteira. Minha avó paterna se chamava Maria. Minha avó materna, minha mãe, minha madrinha, minhas primas de primeiro grau, minhas primas de segundo grau, minha sogra, as 12 mil tias da minha esposa Beth – aliás, a única que não tem Maria na certidão de nascimento. Foi por isso que me casei com ela?

Em maio, conheci mais uma Maria. É uma Maria genuína, que poderia estar aqui, ao nosso lado, ou há dois mil anos no Oriente Médio, ou há dez séculos numa aldeia europeia, hoje em Vargem Grande Paulista, num oásis rural cercado de concreto, numa fortaleza invisível de silêncio, salva dos barulhos inúteis da vida urbanoide.

A Maria que conheci agiu como tal. Recebeu eu e Beth como parentes, com um sorriso genuíno de quem nunca nos viu, mas confia porque, se somos amigos do filho dela, somos seus amigos.

A Maria com quem conversei me serviu, num canto da casa baixa onde mora, no refúgio da crueldade externa, um café mineiro, daqueles que já vem adoçados e com a doçura da cozinheira, acompanhado de um pão com manteiga e uma prosa que só pede ponto final porque o Sol resolveu encerrar expediente.

A Maria com quem conversei vence batalhas como se comprasse pão na padaria da esquina. Derruba monstros como se jogasse bolinha de gude com o neto mais novo em chão de terra batida. Conta suas derrotas como se falasse do prato que fizera para o almoço de qualquer segunda-feira. Esta Maria não quer o centro do palco, ela te dá o palco, as cortinas e a plateia.

A Maria é de grandes feitos, mas não compreende porque tanto alarde e admiração de quem a visita, tanta gratidão de quem convive com ela. A Maria de Vargem Grande Paulista não frequentou a escola porque não tinha roupas e sapatos, mas tem vários diplomas da escola da realidade.

Ela enviuvou aos 40, criou sete filhos. Quatro deles nasceram em casa, sem parteira. Depois, adotou mais um, o sujeito que me levou para visitá-la. Maria, ao ver-se viúva, criou este exército com pouco mais de um salário mínimo ao mês e fala disso como se fosse sócia das Minas Gerais, não as de hoje, mas às do tempo da derrama.

A Maria que lidera todas as outras sem conhecê-las está com 77 anos, vive numa casa transportada e reconstruída ripa por ripa de madeira há mais de quatro décadas. Lugar que se vê protegido por mais três casas, onde vivem alguns de seus filhos, que deram a ela 12 netos, que a presentearam com três bisnetos.

Maria pode ser sinônimo de dor e sofrimento, mas testemunha o sangue na cruz, sem esbravejar. É parte do seu caminho, a árvore que aparece na paisagem pelo retrovisor. A Maria de Vargem, a Maria do Júnior Landim, nocauteou um câncer há 19 anos. Comenta sobre o maior dos males tal qual uma gripe da semana passada.

Em seu aniversário de 77 anos, Maria foi Maria até na hora da foto oficial da família. Naqueles acasos que juro não existem, Maria ficou no centro da foto e acabou escondida pelo bolo para que todos brilhassem, mas ao lado dela.

As Marias são assim, como a música do Milton. Elas falam conforme os interesses do freguês. Não gastam substantivos e adjetivos com quem não merece. Claro, como qualquer Maria, são falíveis e se contradizem porque amam. Nasceram para proteger; assim, podem gastar vela com mau defunto, questionar se santo de casa faz milagre, mostrar que o espeto é mesmo de pau, mas também dá porrada, em casa de ferreiro.

Marias não são santas, ainda que canonizadas. Podem tagarelar sem perceber, até fazer uma fofoquinha; na verdade, se justificam com “estava só comentando”. Expressão tão verdadeira que só poderia ter sido inventada por uma Maria.

Marias são gente como nós, quase sempre gente melhor do que a gente. Marias agem, lutam, se cansam, ficam exaustas, acordam no dia seguinte, agem, lutam, se cansam, se exaurem novamente. Marias fazem. Marias são.

Maria é um verbo!

Comentários

Cidinha Santos disse…
São tantas Marias lindas e fortes, sofridas e lutadoras. Obrigada por me apresentar mais uma!