O argentino chinês

Jorge Pastor em atendimento (Foto: Nair Bueno/DL)


“O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano

O meu bisavô, mineiro

Meu tataravô, baiano

Meu maestro soberano

Foi Antônio Brasileiro”

(Paratodos - Chico Buarque)

Marcus Vinicius Batista

*** Matéria publicada, em 22 de abril de 2019, no Diário do Litoral (Santos/SP)


Jorge Raul Pastor acordou com a gritaria à uma hora da manhã, em um dia de agosto de 2004. Reconheceu a voz da esposa de Laurindo, um amigo que morava no apartamento ao lado. Eles se conheciam desde 1995, quando Jorge se mudou para Santos.

Jorge estava crente que se tratava de uma briga de vizinhos. Aí viu a porta do vizinho aberta, entrou e encontrou os familiares em volta de Laurindo, que estava com o corpo retorcido e desacordado. Uma espuma branca saía da boca do amigo. Ele havia se urinado.

Jorge não conseguia ouvir a pulsação do amigo tampouco sentir a respiração dele. Pensou ser um coma diabético. Jorge e um dos filhos de Laurindo o colocaram num carro e o levaram para a Santa Casa de Santos. Por uma fresta, Jorge testemunhou as tentativas da equipe médica. Laurindo estava morto.

Depois da chegada da família, Jorge pediu a um dos médicos para ver o corpo do amigo. “Não sei porque fiz isso. Estava calmo. Nunca tinha visto um cadáver. Nunca tinha ido num velório. Morria de medo.”

O médico o alertou sobre uma vítima fatal de acidente que estava na mesma sala. Jorge insistiu, recebeu autorização e entrou. Lá, retirou parte do lençol que cobria Laurindo e tocou em seu braço. “Senti um impacto forte na nuca, como uma marretada. Meu corpo vibrava como se estivesse coberto por uma manta elétrica. Vi um clarão e percebi que ele estava com medo. Ele temia por Érika, a filha. Antes, eu estava preocupado em salvar a vida dele. Agora, precisava salvar a morte dele.”

Jorge se afastou do corpo do amigo e o tocou novamente. As sensações se repetiram. “Não sei quanto tempo durou. Não sei para onde fui. Sei que fui para um lugar onde não existem espaço e tempo e voltarei um dia”, explica Jorge, com duas interrupções na fala e lágrimas nos olhos.

Ele saiu do hospital e viu a filha de Laurindo chorando perto de uma árvore. “Eu a abracei e a percebi calma. Naquela hora, eu entendi que a morte não existe.” No meio da madrugada, as sensações voltaram; a mensagem agora era mais tranquila para a família. Jorge conversou com os parentes de Laurindo, voltou para casa, vomitou e dormiu tranquilamente até a manhã seguinte.

A história acima mudou a vida de Jorge, um argentino que se mudou para o Brasil por causa da militância no Movimento Humanista, grupo com presença em 50 países. A partir daquela experiência na Santa Casa, ele iniciou uma busca espiritual que o fez mergulhar na Medicina Chinesa.

O primeiro passo foi procurar acolhimento em meditação e no Tai Chi Chuan. Jorge começou a estudar com o mestre Augusto Leitão, discípulo de primeira linhagem do mestre chinês Liu Pai Lin. Essas explicações fazem parte da essência de quem se transformou, nos últimos 15 anos, em especialista no assunto. “Eu sempre tive preocupação em buscar raízes, entender a experiência histórica acumulada em milhares de anos de conhecimento.”

Pela ordem, o argentino radicado em Santos aprendeu e se dedicou ao Tui Na (técnica de massagem), acupuntura, fitoterapia e I-Ching. Atualmente, passa uma tarde por semana, na Sociedade Taoísta, na Liberdade, em São Paulo, sob ensinamentos de um monge. O I-Ching tem cerca de 7500 anos de história. Jorge, nos últimos dois anos, também virou professor e dá aulas em Santos e em Curitiba, no Paraná.

“Nunca tinha visto um negro”

Jorge chegou ao Brasil em 1998. Tinha 23 anos e vinha para ajudar a estruturar o Movimento Humanista no país. Após dois dias de viagem de ônibus, desembarcou na Rodoviária do Tietê, em São Paulo. Não falava uma palavra em português.

De informação em informação, conseguiu descobrir como chegar na rua 24 de maio, sede do movimento. Dali, o primeiro trabalho: levar a palavra do grupo para outras pessoas. O destino seria o Estádio do Morumbi, numa noite com mais de 100 mil pessoas que foram assistir aos shows das bandas Ira e Titãs e, como atração principal, The Pretenders. “Nunca tinha visto tanta gente junta. Eu vinha do interior da Argentina. Nunca tinha visto um negro.”

Jorge nunca largou o Movimento Humanista. Antes de se aproximar da Medicina Chinesa, teve vários empregos. Trabalhou com computadores, diagramação de revistas e fez diversos bicos. O mais curioso deles foi a gerência de Marketing de franquias da Hugo Boss, sem ter a formação acadêmica na área. Amigo do filho do dono de franquias, Jorge recebeu a proposta e foi a uma entrevista com uma alemã, em São Paulo. “Ela desmontou quando perguntou se eu era argentino. Disse que sim, que era de Rosário. A alemã me perguntou se eu torcia para o Rosário Central. Também disse que sim. Ela tinha sido casada cinco anos com um argentino, torcedor rosarista.”

Ao conseguir o emprego, Jorge mandou uma foto do registro em carteira para a mãe Ofélia. Era uma resposta para as reclamações dela, quando Jorge era adolescente. “Eu era um vagabundo. Ela me acordava às segundas-feiras com os classificados de emprego. Eu, com 15 anos, só mandava currículos para os cargos de chefia, de gerência. Queria ser chefe ou ser guerrilheiro”, conta – entre risadas – para explicar que só falava de política no período, final da década de 70, com a Argentina sob ditadura militar.

A japonesa e o menino especial

O Tai Chi Chuan levou o argentino a uma mudança na vida amorosa. Jorge tinha passado por dois casamentos e tinha dois filhos: André, de 22 anos, que trabalha com ele hoje, no Espaço Bem-Estar, onde fica o consultório de Medicina Chinesa. A outra filha é Samanta, que vive e trabalha na França.

Nas aulas de Tai Chi Chuan, Jorge conheceu Suzy Yamazato, que o apresentou à prima dela, há oito anos. Mônica, de família japonesa tradicional em Santos, tinha atuado como fisioterapeuta e mudara de vida, tornando-se consultora na área de estética. Ele passou a trabalhar com elas num espaço na avenida Conselheiro Nébias. Jorge e Mônica começaram a namorar.

O argentino não queria mais ter filhos. Mônica, que era viúva, lutava por outro caminho: a adoção. Um ano depois, ela foi chamada para receber Pedro, um menino negro, ainda bebê. Enquanto Mônica iniciava a jornada da maternidade, Jorge se tornava pai pela terceira vez.

A família globalizada

A família plural Yamazato-Pastor não é exatamente uma novidade para Jorge. Os problemas, as experiências, as vitórias podem até ser, mas a geografia global não. “Pedro é uma criança muito inteligente, especial. Ele veio ao mundo para nos ensinar, e não o contrário. Temos que entender que vamos aprender com ele.”

A origem no interior da Argentina, onde não se viam pessoas negras, não conteve o destino mundo afora. A família de Jorge está espalhada por diversos países. Um exemplo é sua mãe, que viveu dois anos na Rússia. Ela foi ajudar uma sobrinha, casada com um jogador de futebol, a cuidar dos filhos gêmeos. Dona Ofélia retornou a Rosário, mas a sobrinha se mudou para a Itália, acompanhando o marido, o zagueiro Cristian Ansaldi, que – inclusive – disputou a última Copa do Mundo pela Argentina.

A medicina como modelo


Jorge Pastor segue à risca os preceitos defendidos pela Medicina Chinesa e as Leis que regem a mutabilidade, no I-Ching. Isso significa compreender todos os aspectos da vida de forma integrada, como equilíbrio para a saúde. “Penso, sinto e faço na mesma direção. Não posso ter contradições internas. Dentro de nós, as contradições geram doenças. Fora de nós, destruição e violência.”

Levando este caminho como essência para seus pacientes, Jorge atende de terça a sexta. Ele não trabalha aos sábados, domingos e segundas, dias para estudo e reflexão. “Preciso de tempo. A base do sofrimento é brigar contra as leis. Se eu brigo, me machuco.” Desta forma, a importância do dinheiro também mudou. Nos tempos da gerência de marketing, ele afirma que corria atrás dele. “Hoje, o dinheiro me serve. Ganho o que preciso. Não quero ser rico.”

A exceção no ritmo de trabalho é o primeiro sábado do mês, quando Jorge e outros profissionais atendem gratuitamente no Parque Estudo e Reflexão, em Caucaia, na cidade de Cotia. O trabalho está conectado com o projeto Acupuntura para Todos, com atendimento itinerante também em Cubatão e Santos.

O mundo ideal nas alturas

Em 4 de maio, Jorge viajará para Punta de Vacas, no Monte Aconcágua, a mais de 3 mil metros de altitude. Na Argentina, fica a sede do Movimento Humanista, que completa 50 anos. É a terceira vez, a primeira em 12 anos, que o acupunturista visita o lugar.

Coincidência ou não, a altitude o aproximará do mundo que considera ideal. Segundo ele, a reunião será uma Torre de Babel. “No mundo ideal, o foco é o ser humano. Buscamos uma nação humana e universal. Uma só nação! O resto são divisões administrativas.”

A militância ensinou o argentino-brasileiro-chinês a sorrir com as pátrias que compuseram sua história de vida. “Não escolhemos onde nascer.” O ex-guerrilheiro nos sonhos de adolescência defende, na maturidade dos 54 anos, o ser humano acima de concepções políticas; as pessoas como a base de quaisquer relações. “No atendimento, às vezes, uma conversa é tudo. Às vezes, você não precisa nem colocar a agulha.”

O caminho, para ele, é a coerência, vivenciado na própria biografia. Um argentino que veio morar no Brasil, onde aprendeu Medicina Chinesa, casou-se com uma descendente de japoneses e hoje é pai de dois filhos negros, um deles adotado. Um homem tão brasileiro como Antônio, da música de Chico Buarque.

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