A cabana (Crônicas Além do Quintal # 14)

Foto: Beth Soares

Marcus Vinicius Batista

Assim que sai do carro com as primeiras sacolas, percebi a cabana à direita, nos fundos do terreno. Passaríamos o final de semana na Chácara Ser, em Tatuí. Aniversário de dois anos de casamento de duas grandes amigas, Larissa e Marucia.

No andar de cima, uma placa identificava o paraíso: Biblioteca. Ainda que estivesse com um romance de viagem – aquele livro eleito para descansar dos livros obrigatórios, das aulas e estudos -, a Biblioteca era a próxima fronteira. A coerência com o silêncio. Depois da piscina, das conversas com pessoas que acabamos de conhecer, de matar as saudades das amigas anfitriãs, da caipirinha preparada pelo Heron, da mala acomodada no quarto, não exatamente nesta ordem de importância, tudo num endereço que nos desligasse da vida urbana.

Quando já estávamos instalados, perguntei para a Larissa sobre a Biblioteca. Ela disse que conversaria com o dono do lugar. Mais tarde, ele nos trouxe a chave. Eu perguntei se poderia conhecer o espaço e ele, desconfiado, me respondeu: “Claro, mas olha, só tem livros de Medicina e Psicologia.” A resposta ideal. Na sequência, o proprietário ponderou: “Se vocês morassem na cidade, emprestaríamos livros. Como são de Santos, fica mais difícil.”

No meio da tarde, eu e Beth resolvemos conhecer a cabana. No térreo, um cômodo para abrigar hóspedes. Quatro, no total. Um sofá-cama e outros dois sofás comuns, além de uma mesa com quatro cadeiras. Paredes forradas em madeira, ótimas para aquecer durante a noite.

O único desconforto, alertaria Marucia no dia seguinte, era as duas bonecas com rostos de Annabelle e da Samara, a garota de “O Chamado”. Bonecas que você se livra pelo medo e, no dia seguinte, elas reaparecem no seu quarto com a plaquinha “Voltei!”

Demos a volta na cabana e subimos a escada. Ao abrirmos a porta, o universo era bem mais vasto. Cerca de 600 livros, num chute bem livre, muito além da Medicina e da Psicologia, cercavam uma mesa com quatro cadeiras. Sobre ela, livros de medicina oriental conviviam com HQs do Homem-Aranha e dos X-Men.

Três grandes estantes e uma menor, de duas prateleiras, cobriam três das quatro paredes. Um livro de cura espiritual segurava uma janela basculante. De Chico Xavier a O Senhor dos Anéis, de Rubem Alves a Lima Barreto, de Stephen King à alimentação indiana, de astronomia à Freud, uma riqueza que nos transformou em crianças com cartão de crédito ilimitado numa loja de brinquedos.

Começamos a investigar as estantes para entender a dimensão do acervo e os critérios usados para abrigar os livros. As sucessivas descobertas nos fizeram permanecer mais tempo, não era uma visita simples, até decidirmos o que ler no final de semana. Meu romance de viagem, do Stephen King, ficaria para a estrada, na segunda-feira.

Os livros passeavam pelas mãos, as orelhas eram dissecadas para que saíssemos de lá com alguma obra para os intervalos na chácara. As marcações e anotações laterais dos donos tornavam mais vibrantes as buscas por um livro de convivência curta. Ali, residiam os interesses deles, percebemos que o sujeito que nos recebeu tinha sido cirurgião, com uma perspectiva mais integradora e filosófica do ser humano. Até então, só sabia que ele voava de ultraleve.

Beth achou um livro sobre Hatha Yoga, didático para quem se encontra no início da jornada rumo ao interior de si mesma. Eu levei um clássico da Psicologia, “Uma Viagem Através da Loucura”, que alterna relatos de Mary Barnes, uma paciente com esquizofrenia e seu médico, Joseph Berke.

Beth, ao perceber meu entusiasmo, alertou: “Nem pense em levar nada para Santos.” Já fiz isso algumas vezes, de levar o livro para casa e depois devolver pelo correio com outro exemplar, uma forma de presentear e agradecer o empréstimo. (Neste link, a crônica que conta melhor como esta história começou)

A Biblioteca ganhou visibilidade pela propaganda boca a boca. Retornamos no dia seguinte, trocamos os livros. Beth ficou com “O Sabor da Harmonia”, de Laura Pires. Eu fiquei com “Criação Imperfeita”, do astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser. Naquela noite, permanecemos por umas duas horas no cômodo térreo, lendo, conversando sobre os livros, com a companhia de Marucia, que ouviu a leitura de trechos até adormecer.

De vez em quando, alguém nos visitava naquela noite de chuva para ver se estávamos vivos. Antes, o resto do pessoal foi conhecer o lugar, de tanto nos ouvir falar. Era uma prévia dos jogos de tabuleiro no quiosque ao lado da cabana, que – um dia antes —, serviu como ponto de meditação. Um mergulho na piscina, após à meia-noite, virou a minha página de domingo.

Na segunda-feira pela manhã, voltei com Beth para devolver o livro que a fascinara, sobre alimentação ayurvédica. Eu tinha devolvido a obra de Marcelo Gleiser na noite anterior e descoberto “Morte: o Amanhecer”, escrito pela médica Elizabeth Kubler-Ross. Ela é autora do clássico “Sobre a Morte e o Morrer”.

Retirei o livro. E tomei uma decisão. Comecei a lê-lo no domingo, ciente de que seria impossível terminá-lo na manhã seguinte. Antes de ir à Biblioteca, “Morte: o Amanhecer” foi abrigada na minha mochila.

Conclui a leitura hoje. Ao Dario, o cirurgião espiritualista voador, um recado: o livro de presente já está separado. Falta a dedicatória. Vou ao correio amanhã, o mais tardar no dia seguinte, para despachar dois livros rumo à Tatuí.

Comentários

Junior Landim disse…
Eu quero uma casa no campo onde possa ficar do tamanho da paz. Onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e LIVROS e nada mais....

Salve Beth e Batista, amigos do peito!