O leão se chama Ricardo


Marcus Vinicius Batista

Ouvi o leão rugir pela última vez no sábado. Parte do bando não conseguia explicar qual o nível de responsabilidade das hienas no incêndio que matara uma dezena de aves raras no Ninho do Urubu. O leão esbravejou e virou notícia: “Aqui, o pau come!”

Cinco dias antes, passei uma hora ao lado do meu pai, leão não da mesma espécie, mas com histórico de gênero e família. Assistimos às conversas entre o leão Ricardo e o macaco Simão, que mantém as raposas, os asnos e os coiotes nos seus devidos galhos todos os dias, com milhares de testemunhas da fauna brasileira.

O leão Ricardo era um espécime em extinção na floresta jornalística. Fruto da velha escola, o leão resistia aos encantos da selva virtual, com seus animais holográficos, suas plantas de plástico e sorrisos enigmáticos e dúbios como o gato de Alice.

Ricardo levava a ferro e fogo princípios que hoje viraram sementes geneticamente modificadas. O leão não comprava qualquer conversa fiada de papagaio, dispensava as adulações que pudessem despertar o pavão que existe em quem se senta no alto da montanha, adorava uma boa briga com o bicho homem que insistia em controlar a natureza com espelhos, pentes e outras quinquilharias de segunda mão.

Ricardo sempre me lembrará que certos animais costumam falar em nome da Mãe Natureza, enquanto queimam a mata que os cerca para erguer seus palácios de adoração aos deuses. Um deles, hoje ratazana milionária, foi chamado de “tomador de grana”, num dos mais corajosos discursos que testemunhei deste leão que se deitou antes do pôr-do-sol.

O leão era um líder de manada à moda antiga. Misturava o vício em trabalho com a irreverência que não costuma ser comum em quem ocupa o cargo. Nas reuniões de bando, colocava-se como um membro ao mesmo tempo que rugia para dar voz de comando. O jeito aguerrido talvez viesse do sangue argentino, lugar onde nasceu para viver na savana (tropical) vizinha.

A velha juba que desapareceu com a idade cresceu no mundo simbólico, de quem cultivava os relacionamentos em diversas vegetações para proteger seu território. Não se especializou em um grupo de animais. Falava com todos, sobre todos e, acima de tudo, para todos. Era respeitado porque sabia que seu poder era provisório e que estava ali, sentado ao microfone no alto da montanha para duvidar do poder constituído, daquelas raposas, daquelas hienas, daqueles asnos que assombram a Arca sem cessar.

O leão Ricardo, símbolo de um ofício hoje em crise, saiu de cena, no meio do dia, à própria revelia. Às vezes, a Natureza nos avisa que o final da tarde pode ser a qualquer hora. Muito obrigado, Ricardo Boechat.

Comentários

Junior Landim disse…
Sensacional professor!
É duro assistir a extinção de coragem e princípios. Um salve a nobre vida do Leão!
Unknown disse…
Triste perda.. espécie em extinção
Brilhante profissional

e ser humano.