Os Invisíveis


Daniel Venegas

Antes de lhe quebrarem o crânio com uma chave de rodas, Jefinho, que clamava à Deus piedade, sufocou no último golpe. No linchamento cometido pelos seguranças do shopping, enfim, encontrara a justiça.

Vida dura é essa de bairro pobre, dizia o Quiroga, dono do mercadinho de mesmo nome na Vila Felicidade. O Quiroga era um sujeito razoavelmente esclarecido. Quando se deu a ocupação do fundo de Vale nas franjas da cidade, foi ele quem resistiu bravamente às tentativas de desocupação do lugar.

Não era do tipo truculento ou baderneiro; ao contrário, vivido, calejado pelas demandas da vida, consolidou-se como moderador, líder natural do lugar. Seu trabalho à frente da comunidade era reconhecido por todos, criara ali a Frente Popular de Resistência, movimento organizado que reuniu vários moradores da Vila em torno de uma só causa. A regularização do terreno invadido.

Nas reuniões da comunidade, ele defendia o pagamento de impostos, dizia que era importante ser reconhecido pelo Estado, Município, alertava a todos sobre a importância de ser cidadão. Somente desta forma, vamos conquistar um lugar na sociedade e doravante pleitear nossos direitos, dizia ele nas reuniões. E assim foi.

O movimento fundado por Quiroga, que carregava "resistência"em seu nome, conseguiu trocar o bico dos coturnos e os escudos policiais, pelos registros e as escrituras dos terrenos da Vila Felicidade.

Com o passar dos anos e dos governos, Quiroga, já um senhor de sessenta e poucos anos, foi perdendo lentamente sua liderança. Apesar dos impostos, não havia ali asfalto ou água encanada, coleta de lixo ou iluminação pública adequada, muitos morreram, outros tantos chegaram.

A Vila Felicidade quadruplicara sua população, e o lixo era queimado ou abandonado nas ruas, tantos eram os problemas respiratórios das crianças e a escassez de saúde, a ponto de doentes perambularem pelas ruas. A falta de iluminação contribuiu bastante para instalação do tráfico, os coturnos e escudos foram trocados por fuzis.

A tirania da polícia era alardeada através de pipas e rojões. Foi justo num confronto desses que Quiroga foi baleado, enquanto tentava recolher algumas crianças para dentro do mercadinho em meio ao fogo cruzado.

Seu Quiroga nunca mais andou e foi obrigado a fechar o mercadinho, sentia muitas dores no local do tiro, tomava Tramal para esquecer a dor e passava o dia aéreo, sem forças. Envelhecera décadas em um só ano, nas raras vezes em que conversava, era pra dizer do filho.

Landinho, traficante de renome da Vila, assumiu o comando do movimento após o confronto que, além de ferir Quiroga, matara duas crianças e também o Kledir, até então chefe das bocas. Não se sabe ao certo quantos eram mortos, muitos deles eram enterrados por ali mesmo, no Chapadão, lugar de terreno plano nas redondezas da Vila.

O lema de Landinho era: "Eles e nóis"!

Negro e influenciado por um recorte de revista, Landinho ficou marcado, sobremaneira, pelo que lera ainda na infância, sobre o Movimento dos Panteras Negras, cujo líder Malcom X pregava a morte de dois brancos para cada negro que caísse. No controle rígido da população, Landinho apregoava os conceitos da sua filosofia às crianças da comunidade. Era quando distribuía o crack à vontade nos "pancadões" semanais.

— E aí, Piuí, tá ganhando quanto para entregar gás?

Saia dizendo, enquanto fazia a ronda diária.

— Ô, Mamorta, olha aqui o tênis que você queria. Fica me devendo uma, hein? Fica esperto que eu vou saber cobrar, na hora certa!

Em pouco tempo, Landinho tornou-se o dono do tráfico na cidade. Negociava sua segurança diretamente com o delegado-chefe da Narcóticos, vez por outra, entregava um medalhão do movimento para os "homi". Dizia ser bom para o andamento dos negócios jogar um osso para comer o filé.

Na Vila, outrora chamada Felicidade, sobrou o mau cheiro dos esgotos a céu aberto, o cachimbo de crack na boca das gestantes zumbis, que consumiam em grande quantia, contanto que trepassem com os soldados do comando.

Justiça na Vila era dividir as pedras!

Feriadão desses de setembro. Doutor Jovahir Arantes, médico famoso e prestigiado na cidade, acorda com a missão de comprar os antepastos para o almoço. Barba bem feita, banho fresco, tênis confortável para passeio, entra no carro e vai até a loja de vinhos do Shopping do bairro.

Estaciona, salta do carro! Gritaria e pânico na entrada, corre em direção aos gritos!

Muito sangue, muito sangue!

— O que aconteceu? Sou médico, pergunta ao segurança.

— Trombadinha vagabundo assaltando a farmácia, doutor!, esbraveja o dono do estabelecimento.

— Só esta semana é a segunda vez, cambada de filho da puta, tem que morrer mesmo!, reclama o comerciante com uma chave de rodas nas mãos!

Doutor Jovahir Arantes se debruça sobre o peito do meliante, silêncio extremo! Fecha-lhe os olhos ainda abertos.

Shorts, camiseta, sandália havaianas de tamanhos diferentes e boné! Nas mãos, um vidro de Tramal. No bolso de trás do short, uma identidade.

Jeferson Quiroga Júnior.


Comentários